Marielle Franco foi uma mulher negra, lésbica, moradora da favela da Maré. De 2007 a 2016 compôs a equipe do mandato do então deputado estadual pelo PSOL RJ, Marcelo Freixo. Durante essa experiência, contribuiu com o importante enfrentamento às milícias que o mandato de Freixo corajosamente protagonizou.
Marielle foi eleita em 2016, na primeira eleição pós-primavera feminista. Marielle é uma das sementes do levante feminista que sacudiu o Brasil e o mundo. Sua campanha foi fortemente marcada pela defesa dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e da negritude. Foi a quinta vereadora mais votada, com expressivos 46 mil votos e uma campanha com a força simbólica da população que representava, sempre tão excluída dos espaços de poder.
O contexto da “Intervenção Militar” no Estado do Rio de Janeiro
No dia 16 de fevereiro de 2018, o presidente Michel Temer assinou o Decreto 9288 de intervenção federal no Rio de Janeiro pelo “grave comprometimento da ordem pública”, sendo aprovado por ampla maioria, no dia 20 de fevereiro, na Câmara e no Senado. O que impedia o Congresso de votar pautas como da Reforma da Previdência já com proposta apresentada pelo governo vigente. Foi nomeado o general do exército Braga Netto como interventor, com atribuições de governador para a segurança pública e comando sobre o aparato policial, prisional e de bombeiros.
A intervenção é anunciada numa situação em que o Estado já tinha sido submetido a diversas operações de Garantia da Lei e da Ordem meses antes — três de patrulhamento de rodovias e dezesseis em favelas e áreas pobres. Ações conjuntas entre as forças armadas e de segurança pública que tiveram elevado número de violações de direitos e de civis mortos. A missão foi apresentada para “recuperar a capacidade operativa dos órgãos de Segurança Pública e baixar os índices de 10 criminalidade”. Entre as metas da Intervenção estavam: a estratégia de “diminuição dos índices de criminalidade”; e as ações de “combater a corrupção dentro dos Órgãos”; e “reorganizar a estrutura da segurança pública no Estado do RJ”.
Entretanto, neste momento outros estados da federação demonstravam índices de criminalidade mais altos que o do RJ. Se a taxa de homicídios no Rio de Janeiro estava em 23 por 100 mil habitantes, no Acre era de 55 — com decapitações e bárbaras execuções — e no Rio Grande do Norte de 69. Num cenário de rebeliões em prisões em Goiás, disputas de facções no Amazonas e em Roraima e paralisações da Polícia Militar no Espírito Santo.
Movimentos sociais e de direitos humanos, bem como instituições, receberam com resistência a intervenção. Houve denúncia das violações e assassinatos já cometidos pelos agentes do Estado. A cobrança às instituições de que tanto nas GLO’s, como na intervenção militar, as forças armadas não apresentam protocolos de atividades e transparência nas ações de policiamento. E de que o exercício de controle externo em todo o período de intervenção foi feito pelo Ministério Público Militar do Rio de Janeiro.
A resistência das forças sociais à intervenção resultou na articulação de plenárias de movimentos sociais, sindicais e de favelas com instituições públicas e parlamentares de esquerda pelos direitos dos moradores de áreas afetadas, bem como, pelo significado na segurança pública. Foram criados grupos junto à defensoria pública, observatórios da intervenção junto a instituições de pesquisa e uma Comissão Popular da Verdade para acompanhamento da ação militar intervencionista e acolhimento de denúncias de violações de direitos. Foi criada uma Comissão na Câmara Municipal do RJ, da qual Marielle Franco fez parte na condição de parlamentar.
O medo das forças progressistas com a intervenção naquele momento, além do impacto democrático-institucional, foi com a intensificação da militarização das áreas mais pobres e as diversas violações dos agentes de Estado. A intervenção militar federal apresentava o perigo de agentes fazerem qualquer coisa nas favelas e periferias, sobretudo contra trabalhadoras e trabalhadores negros. A política do confronto da PM vai sendo assimilada nas ações das forças armadas. Relatos de maior letalidade nas operações militares, violência nas casas, violência sexual, torturas psicológicas e físicas e assassinatos — como nos Complexos do Alemão e da Penha.
O legado não foi o da “integração da atuação policial” como o anunciado e a diminuição de roubos de rua, veículos e cargas. O Observatório da Intervenção e a Anistia Internacional destacaram o aumento de mortes nas ações policiais. No contexto de intervenção militar na segurança pública, no dia 14 de março, tivemos a demonstração de força de setores que executaram Marielle, mulher negra da esquerda, uma das poucas vereadoras da capital, juntamente com Anderson que dirigia o carro em que se encontravam. No dia 16 de março, a Comissão Internacional de Direitos Humanos se manifestou contra a intervenção militar. No dia 26 de março, sete relatores da ONU emitiram comunicado às autoridades brasileiras apontando que a intervenção fosse revista.
Uma noite que não terminou — por que tiraram a vida de nossa companheira?
Em 14 de março de 2018, enquanto estava no início do segundo ano do seu mandato de vereadora, foi brutalmente assassinada junto com seu motorista Anderson Gomes. Seu assassinato causou enorme comoção no Brasil e no mundo. E causa perplexidade, às vésperas de completar 2 anos de seu assassinato, seguirmos sem saber quem são os mandantes do crime e porque Marielle foi assassinada.
As circunstâncias do assassinato que vitimou Marielle e Anderson nos levam a crer que foi um crime político. Seu carro foi seguido ao sair de uma atividade no Centro e foi alvejado com 13 tiros no bairro do Estácio, no caminho para sua casa. Seus executores não queriam bens materiais. Nada, além das vidas de Marielle e Anderson, foram levados do local.
As investigações apontam que a munição utilizada pertencia à um lote que havia sido vendido à Polícia Federal, material que não pode ser vendido a civis. Além disso a perícia concluiu que as munições que mataram Marielle pertenciam ao mesmo lote dos projéteis utilizados na maior chacina da Grande São Paulo, que vitimou dezessete pessoas em 2015. Três policiais militares foram condenados por esses crimes.
Nos meses que se seguiram ao crime foram feitas inúmeras reportagens que indicaram erros na condução das investigações. Testemunhas foram dispensadas pela Polícia Militar no local do crime; o carro aonde estavam Marielle e Anderson foi abandonado por 40 dias no pátio da delegacia sem que todas as perícias tivessem sido feitas; os corpos de Marielle e Anderson não passaram por exames de raio X; a arma utilizada pelos assassinos são de uso de tropas de elite, não sendo facilmente apreendidas com criminosos; as câmeras da Prefeitura na rua do crime foram desligadas dias antes do duplo homicídio.
As investigações avançaram um pouco mais em 2019, quando se revelou o envolvimento do Sargento militar reformado Ronnie Lessa e de Élcio de Queiroz como os executores do crime. Ronnie é acusado de executar os disparos e Queiroz dirigia o carro. Os dois eram ligados ao “Escritório do Crime”, organização criminosa que agrega policiais e ex-policiais que cometiam homicídios em troca de dinheiro. Apesar desse inegável avanço nas investigações, até hoje não foram revelados os mandantes e os motivos do crime.
Todos os indícios apontam envolvimento dos acusados com a família Bolsonaro
Causa perplexidade, até hoje, os fatos que ligam o presidente da república e seus filhos e os executores de Marielle e Anderson. Élcio de Queiroz esteve no condomínio Vivendas da Barra, para se encontrar com Ronnie Lessa, horas antes do crime, e os depoimentos do porteiro revelam que os dois criminosos solicitaram entrada para a casa de Jair Bolsonaro. As perícias feitas no equipamento de controle de entrada e saída do condomínio foram criticadas por diversos profissionais da área. A mudança no depoimento do porteiro sugere que o envolvimento de políticos poderosos, no país da impunidade, pode ser real.
São inúmeras as ligações dos envolvidos no crime com a família Bolsonaro. Élcio esteve no condomínio de Bolsonaro e Ronnie diversas vezes no ano de 2018. Um dos filhos de Bolsonaro se envolveu com a filha de Ronnie. São igualmente inaceitáveis as relações políticas de Queiroz (ex-assessor de Flávio Bolsonaro) e Ronnie Lessa com a família Bolsonaro.
O caso Adriano — a quem interessa vê-lo executado?
Em fevereiro desse ano, pouco antes de completar 2 anos desse crime político, fomos surpreendidos com uma operação policial na Bahia, em conjunto com a PM de Witzel. Essa operação matou, em suposto confronto, o Capitão Adriano. Adriano Magalhães da Nóbrega, é apontado como chefe do grupo de assassinos profissionais conhecido como “Escritório do Crime” no Rio de Janeiro. Adriano era ex-capitão do BOPE da PMRJ e sua execução levanta suspeitas de que houve uma tentativa de “queima de arquivo” de uma peça chave para compreender o assassinato de Marielle e Anderson. Sem saber de Adriano quem deu a ordem para que seus assassinos matassem Marielle, fica mais difícil elucidar esse brutal crime.
Apesar de negarem ser próximos de Adriano, Jair e Flávio Bolsonaro precisam se explicar para a população brasileira. Adriano recebeu elogios do então deputado Federal Jair Bolsonaro, ainda em 2005. Mas suas relações não são apenas dessa época. A mãe e a esposa de Adriano foram lotadas no gabinete de Flávio Bolsonaro até 20.12.2018, momento que ficaram publicas as denúncias envolvendo Fabricio Queiroz, a quem as duas repassavam parte do seu salário de assesAo completar 2 anossoras. Fabricio Queiroz ficou escondido em Rio das Pedras, território controlado pelo miliciano Adriano da Nóbrega. A filha de Fabrício, por sua vez, foi assessora de Jair Bolsonaro até 2018, quando encerrou seu último mandato de parlamentar federal. Muitos laços fortalecem as correntes de relações entre Fabrício, Adriano e a família Bolsonaro.
É necessário exigir de Rui Costa (PT), governador da Bahia e de sua polícia, que explique por que Adriano foi executado enquanto estava sozinho em uma casa isolada, sem reféns e sem oferecer maiores riscos. O que explica a PM invadir a casa em que estava Adriano? Por que entraram atirando para todos os lados se a casa estava cercada por 60 policiais? A quem interessava silenciar Adriano da Nóbrega?
O papel do PSOL — ir às ruas exigir justiça! Quem mandou matar Marielle e por quê?
Os assassinatos de Marielle e Anderson produziram grande impacto sobre a militância, os grupos e instituições que iniciaram o acompanhamento da intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro. O Observatório da Intervenção, a Comissão Popular da Verdade e as ações da Defensoria seguiram com o acolhimento das denúncias. Porém, as articulações em plenárias entre movimentos sociais, sindicais e de favelas arrefeceram. O medo, a ausência de respostas e a falta de ações políticas acometeram a capacidade da militância de cobrar o Estado em Intervenção Federal.
Neste período, não houve um espaço de articulação política para cobrar a Secretaria de Segurança Pública e o Comando do Exército responsável pela intervenção militar. A Anistia Internacional foi a entidade que realizou pequenas ações nestas instituições. As grandes ações de protestos foram realizadas ainda sobre o impacto do assassinato e nos espaços centrais da cidade que dialogaram com a sociedade. Não houve convocação para manifestações contra o Estado responsável pela segurança pública.
É papel do PSOL promover atos em todas as cidades na data em que se completam 2 anos do assassinato de Marielle e Anderson. É tarefa do partido, já que Marielle era militante e figura pública, animar uma mobilização permanente, que lute por justiça para Marielle e Anderson, com a exigência que se apure quem foram os mandantes e porque interessava silenciar nossa companheira. Se não podemos afirmar quem foram os responsáveis, por outro lado não podemos descartar o envolvimento de ninguém nesse condenável episódio. Nem mesmo os indícios que envolvem o presidente Bolsonaro e seus familiares. Os últimos fatos divulgados dão conta de uma linha de investigação que aponta para o envolvimento de assassinos profissionais, milicianos, policiais e da família Bolsonaro. Diante desses elementos gravíssimos, que envolvem poderosos que facilitam a obstrução das investigações, é urgente uma investigação ampla e independente que possa alcançar os verdadeiros mandantes desse crime. Defendemos a criação de uma comissão independente, formada pelos familiares de Marielle, a ABI, OAB, Anistia Internacional, representantes do movimento de negros e negras, LGBTQI+ e feminista, a comissão de Direitos Humanos da ALERJ, o PSOL.
O 8 de março — Dia Internacional de luta das mulheres, tem uma tarefa histórica diante da grave crise política que assola o governo Bolsonaro. Ao completar 2 anos desse crime político, exigimos justiça para Marielle e Anderson. A complexidade deste caso está na resposta para a família e para o conjunto da sociedade. É urgente que as autoridades respondam por que foram brutalmente assassinados e quem são os mandantes do crime.