A iniciativa de Bolsonaro de liberar as terras indígenas para a livre-iniciativa é uma gravíssima ameaça à sobrevivência das 305 nações autóctones ainda presentes no território brasileiro. O ataque não é uma medida isolada. Declarações que questionam a própria humanidade dos povos originários, nomeação de pessoas ostensivamente hostis à causa indígena para ocupar postos-chave da FUNAI, paralisação das demarcações, cumplicidade com as invasões de reservas florestais e terras demarcadas, absoluto descaso com a escalada da violência e completo abandono das políticas públicas caracterizam uma cruzada avassaladora do governo miliciano contra os povos indígenas.
A violência contra as nações originárias não começou, evidentemente, com a chegada de Bolsonaro ao governo federal. A história do Brasil é indissociável da história do genocídio dos índios. As parcas conquistas impressas na Constituição de 1988 não foram suficientes para garantir a paz nas florestas. Desde 2003, os relatórios do Conselho Indigenista Missionário têm denunciado sistematicamente a escalada dos assassinatos e o descaso dos governos Lula, Dilma e Temer com as populações originais.
Mas a chegada de Bolsonaro ao Planalto representa, sem dúvida, um retrocesso brutal na relação do Estado brasileiro com os povos indígenas. Concebendo-os explicitamente como um entrave ao “progresso” e confundindo “progresso” com “reino dos negócios”, Bolsonaro resgata a política genocida da ditadura militar, cuja essência, como ficou fartamente documentado no Relatório Figueiredo, deixa a população indígena diante de duas opções: aculturação e integração forçada ao mundo do capital ou puro e simples genocídio.
O objetivo explícito do projeto de lei enviado por Bolsonaro ao Congresso Nacional — o PL 191/2020 — é criar um marco legal que dê segurança jurídica aos piratas que impulsionam o novo ciclo de devastação da fronteira ainda inexplorada do território brasileiro. Trata-se, na verdade, de “regulamentar” a invasão de terras indígenas pelos agentes do capital.
A brecha encontrada para promover a usurpação das terras indígenas é uma chicana jurídica que violenta a Constituição Federal. As terras indígenas são bens da União destinados ao usufruto exclusivo dos povos indígenas. A possibilidade de aproveitamento de recursos hídricos e minerais, contemplada no Parágrafo 3º da Constituição, é condicionada à comprovação de “relevante interesse público da União”, o que, em nenhuma hipótese, coaduna com os interesses particularistas que presidem a livre-iniciativa.
Não há margem para confusão. A submissão da terra aos imperativos do mercado é pura e simplesmente inconciliável com a relação umbilical dos povos indígenas com a natureza e seu território. A exploração predatória do meio ambiente inerente à lógica do capital é incompatível com o reconhecimento e respeito ao modo de vida dessas comunidades — compromissos explícitos da Constituição de 1988.
O governo Bolsonaro expressa os imperativos do capital, grande e pequeno, praticamente sem mediação negociada com a sociedade civil. Por isso, é tão chocante e monstruoso. A ofensiva contra os indígenas é consequência inexorável da definição do agronegócio e do extrativismo como principais frentes de expansão do capitalismo brasileiro. O rebaixamento da posição da economia brasileira na divisão internacional do trabalho, por sua vez, é produto de uma inserção subalterna, impulsionada pelo neoliberalismo, na ordem global.
Sem o contraponto da luta de classes, o capital avança com a estratégia de terra arrasada. A reversão neocolonial é levada ao paroxismo. A dimensão da tragédia que significa a exposição do que restou de terras virgens à sanha dos negócios do capitalismo global foi caracterizada por Eduardo Viveiros de Castro, destacado antropólogo brasileiro, como uma “ofensiva final contra os povos indígenas”.
As questões indígena, ambiental e agrária estão orgânica e indissoluvelmente relacionadas ao padrão de acumulação liberal-periférico e suas consequências nefastas sobre a organização econômica, social e cultural do país. É impossível deter o genocídio dos povos indígenas sem enfrentar a violência que submete os povos da região à lógica econômica da pilhagem neocolonial e à dinâmica da guerra étnica típica de conquistas coloniais.
O desafio imediato, no entanto, é deter os desatinos de Bolsonaro. A sobreposição de interesses empresariais aos direitos coletivos, culturais, sociais e ambientais dos povos originários é imoral e politicamente injustificável, pois só beneficia um punhado de empresas mineradoras, hidroelétricas, fazendeiros, garimpeiros, redes hoteleiras, empresas de turismo e aventureiros inescrupulosos que veem no saqueio da natureza e na exploração dos índios uma oportunidade de negócio.
A pressão para que o PL 191/2020 sequer seja aceito pelo parlamento é uma tarefa necessária e urgente, mas seria uma ingenuidade imaginar que os deputados contrariarão os poderosos interesses que impulsionam a nova rodada de acumulação primitiva. Fora das ruas, os desvalidos não têm voz.
A unidade dos povos indígenas é um imperativo da luta de classes, mas, sem a solidariedade do conjunto dos trabalhadores, ela será insuficiente para deter a fúria do capital-bandeirante que renasce das cinzas para caçar os últimos aborígenes e raspar o tacho do que resta das riquezas naturais da região. Nas condições de uma guerra aberta contra todos que vivem do próprio trabalho, a luta corporativa é legítima e inescapável, porém insuficiente para evitar a destruição dos direitos sociais, pois, isoladamente, nenhum segmento social tem a menor condição de se defender dos ataques do capital.
A defesa dos povos indígenas está indissoluvelmente vinculada à sorte da classe trabalhadora, assim como a possibilidade de um modo de produção e consumo condizente com o equilíbrio do meio ambiente depende inextrincavelmente da sobrevivência das nações autóctones — as únicas capazes de conviver harmonicamente com a fauna e a flora da floresta. A luta de classes embola os de baixo contra os de cima.
Contrapoder, 10 de fevereiro de 2020