Eu vi um mundo feminista nascer

Notas sobre as manifestações do 8 de março em Montevidéu

Henrique Tahan Novaes

As marchas feministas têm se destacado nas cenas das Lutas da América Latina. Tudo leva a crer que trata-se de um fenômeno irreversível. Assassinatos de mulheres, mortes em clínicas de aborto clandestino, trabalho doméstico desigual, exploração desenfreada do trabalho feminino, remuneração abaixo dos homens e controle da política parlamentar pelos homens certamente impulsionam essas lutas.

A organização do evento foi realizada de forma horizontal e autogestionária em reuniões articuladas há varias semanas. De alguma forma conseguiu expressar a unidade na diversidade das pautas feministas. A marcha era composta por mais de 30 blocos sequenciais, cada bloco com pautas específicas e gerais, que passavam por temas como antipatriarcalismo, feminicídio, faltaram algumas porque foram assassinadas, anticapitalismo, direito ao aborto (já consolidado no Uruguai), nenhuma a menos, “no es no”, meu corpo me pertence, feminismo e economia solidária, críticas a igreja católica, feminismo trans, mulheres que lutaram na ditadura, etc.

Uma imensidão de mulheres geralmente pintadas de roxo, com camisetas roxas, em sua maioria jovens de 16 a 25 anos, cantavam e puxavam palavras de ordem. Uma palavra de ordem predominava: “Que saibam os machistas, América Latina vai ser toda feminista”. Quando se fala em América Latina, se referem a América Latina hispânica.

Percorremos a imensa avenida 18 de Julho, da praça da Liberdade até a Faculdade de Direito da Universidade da República. Uns 12 quarteirões, umas 80 mil pessoas mais ou menos.

A polícia, num efetivo nanico para os padrões brasileiros, se posicionou em dois locais. Numa Igreja da Avenida 18 de Julho e no Banco de La República. As manifestantes me explicaram que nesses locais houve protestos na forma de pichações. Duas instituições importantes no capitalismo uruguaio. A Igreja católica e os bancos.

As bandeiras ainda oscilam entre a busca da igualdade formal (impossível dentro dos marcos do capitalismo) e a igualdade substantiva, só possível de ser alcançada dentro de uma estratégia anticapital internacional, que questione os pilares do sociometabolismo do capital: o trabalho alienado-explorado na produção e reprodução da vida, a propriedade privada, a mercantilização da vida e o Estado enquanto aparato de dominação .

Percebi que já existe no imaginário das marchas uma consciência revolucionária anticapital, mas parece que essa ainda não é a tônica. Isso envolverá um longo trabalho de formação por parte dos movimentos sociais em geral.

Destacaria aqui duas bandeiras: “O patriarcalismo e o capitalismo devem cair juntos” e “Faltaram algumas porque foram assassinadas”.

A marcha feminista de ontem foi considerada uma prova de fogo dos movimentos sociais. Semana passada foi a posse de Lacalle Pou, depois de 15 anos de Frente Ampla. O Uruguai é um país pequeno e complexo. Aparentemente é difícil explicar como a Frente Ampla conseguiu ser derrotada na presidência, mesmo comandando a cidade de Montevidéu a décadas. Trata-se de um país dividido, mas não fraturado como o Brasil. Lacalle Pou foi eleito por menos de 20 mil votos. Dizem que pesou na votação o conservadorismo do interior e a oscilação dos bairros mais pobres, que em parte migraram para Lacalle. De qualquer forma, passou da hora da América Latina fazer um balanço da estratégia melhorista-reformista. A vida no Uruguai de alguma forma melhorou, diminuiu o desemprego e a pobreza, direitos sociais foram conquistados. Mas as questões fundamentais ainda são as mesmas: exportação de produtos primários, controle da economia pelas corporações, super exploração do trabalho, e busca de estratégias de sobrevivência para trabalhadoras e trabalhadores informais.

Darcy Ribeiro considerava o Uruguai o farol da América Latina. É aqui que brotam as mudanças antecipadas, é aqui que se materializam as pautas mais avançadas da América Latina. Interrupção da gravidez, direito a fumar maconha, direitos dos homossexuais, dentre tantos outros. Falta agora materializar o mais importante dos direitos: o direito ao trabalho emancipado. Parabéns as lutas feministas do Uruguai.

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