“Eles têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos”, Salvador Allende
A Bolívia enfrenta um típico golpe de Estado latino-americano. A ruptura da legalidade é patrocinada por uma aliança entre as oligarquias e o imperialismo norte-americano. A conspiração reacionária foi codificada por Atílio Boron. Ela segue um padrão conhecido: limite dos governos de conciliação para os interesses da burguesia; permanente desgaste midiático; denúncias de supostas ações arbitrárias das autoridades constituídas; aparição de um democrata salvador da pátria; omissão das forças armadas na defesa da Constituição; tergiversação das forças democráticas diante do avanço da direita. O elemento determinante dos golpes de Estado contrarrevolucionários é sempre, no entanto, a passividade das classes subalternas diante dos ataques ao Estado de direito e às conquistas sociais dos trabalhadores.
O caso boliviano é sui generis. A relativa indiferença dos movimentos populares diante da anunciada sedição evangélico-miliciana, impulsionada por Macho Camacho, contrasta com a firme resistência dos movimentos indígenas, sociais e sindicais ao governo ilegítimo da autoproclamada presidente Jeanine Áñez. As massas que ficaram indiferentes à conspiração contra Evo Morales mobilizam-se com heroísmo em defesa da “wiphala” símbolo da Constituição que promete o respeito às nações indígenas e a integração social. A contradição revela o distanciamento do governo Evo Morales de suas promessas de mudanças sociais.
A progressivo giro à direita de Evo Morales acarretou uma série de desgastes com suas bases sociais, entre os quais destacam-se: o longo conflito em torno da construção da rodovia em TIPNIS que corta territórios indígenas; o desrespeito ao plebiscito de 2016 que impedia um quarto mandato presidencial a Morales; as leis que favorecem o agronegócio e as mineradoras; a segregação e perseguição política dos movimentos sociais que não aceitam o alinhamento automático com as diretrizes do governo; o aparelhamento do Estado pelos militantes do partido oficial; a entrada massiva de quadros da direita nas fileiras do MAS; as discrepâncias regionais nas leis que gerem o trabalho dos cocaleiros; a concessão de privilégios ao alto escalão do exército (que continuava sendo treinado pelos Estados Unidos), em detrimento dos militares de baixa patente.
A insatisfação dos movimentos sociais com o governo Evo Morales chegou ao ponto de levar a Central dos Trabalhadores Bolivianos — COB -, organizações cocaleiras, principalmente de La Paz, e mineiros de Potosí, a aderirem, ainda que com pauta própria, aos protestos contra o resultado das eleições. O distanciamento de Morales de suas origens sociais e políticas abriu a brecha para que a direita fundamentalista, que até então se expunha timidamente, tomasse a liderança dos protestos e exigisse a deposição do presidente. A escalada do movimento golpista é conhecida: queima de casas de governantes, sequestro de familiares de lideranças do governo, humilhação pública da prefeita Arce Guzman, de Vinto, em Cochabamba, sedição do exército e, finalmente, a luz verde das oligarquias burguesas. Na melhor tradição boliviana, o golpe final foi dado pelo ultimato dos comandantes das forças armadas obrigando Evo Morales a apear do poder.
A renúncia do presidente e de toda sua linha sucessória gerou um vácuo de poder. A luta pelo controle do Estado está aberta. A vitória do fascismo não está garantida. As organizações de trabalhadores que pediram novas eleições são as mesmas que lideram a resistência em defesa do Estado plurinacional e contra o golpe contrarrevolucionário. Na Bolívia configura-se o esboço de uma situação de duplo poder. As ruas medem força com as armas da repressão. O país encontra-se à beira da guerra civil.
Aos gritos de “ahora sí, guerra civil!”, as organizações indígenas, a COB, os mineiros e os cocaleiros não reconhecem as novas autoridades e conclamam os bolivianos, em defesa das conquistas sociais, a depor os usurpadores do poder. A este processo soma-se, após alguma hesitação, o MAS, que, mesmo debilitado, ainda é o maior partido boliviano.
O desfecho da luta de classes na Bolívia é incerto. O povo boliviano tem uma longa e sangrenta tradição de luta: resistiram aos espanhóis, derrubaram mais presidentes que qualquer outro país no planeta, não se renderam à prepotência das grandes corporações, não sucumbiram ao colonialismo cultural. Não deixaram a intervenção reacionária avançar sem o bom combate.
O futuro está indefinido. A vitória dos golpistas reacionários, liderados pelo empresário-miliciano Macho Camacho e pela autoproclamada presidente Jeanine Áñez, representaria o retorno dos ciclos de ditaduras militares antissociais e antinacionais que caracterizam a trágica história boliviana. O retorno do MAS ao poder, com Evo ou algum preposto, daria uma sobrevida à experiência progressista, mas dificilmente arrefeceria a instabilidade política. A vitória da coalisão camponesa-indígena que impulsiona as vigorosas manifestações de repúdio ao golpe representaria uma verdadeira revolução democrática.
A emergência das massas populares com sujeito histórico quebra a polarização entre a direita e a esquerda da ordem, abrindo novas possibilidades para o enfrentamento da barbárie capitalista no continente latino-americano. Esboça-se uma possibilidade de derrotar a contrarrevolução permanente que subordina o povo latino-americano à lógica dos negócios. Somos todos bolivianos!
Contrapoder, 18 de novembro de 2019