Livre para circular pelo país, Lula reapresentou-se no cenário político como o contrário do Belzebu. Para derrotar a perigosa ofensiva autoritária, que avança sobre os escombros da Nova República, propôs uma cruzada do bem contra o mal no terreno eleitoral da moribunda Nova República. Em seu triunfal discurso no 7º Congresso do PT, repudiou a necessidade de o partido fazer qualquer tipo de autocrítica. As decisões dos delegados petistas referendaram sua orientação. A reeleição de Gleise Hoffman para mais quatro anos na presidência do partido, por ampla margem, é a certeza absoluta de que tudo continuará como dantes nas hostes petistas.
Com a empáfia de quem se considera salvador da pátria, o objetivo de Lula é repetir a malfadada estratégia eleitoral de 2018, cuja irresponsabilidade fica patente na declaração de um de seus porta-vozes, Breno Altman, que, às vésperas do dia da votação, explicitou em suas redes sociais a intenção do alto comando petista de colocar o eleitorado contra a parede. “Haddad e Bolsonaro é a segunda volta dos sonhos, por contrapor sem máscaras a civilização e a barbárie. Não se trata apenas ou principalmente de cálculo eleitoral, embora também o seja, por ser cientificamente mais fácil para a vitória da esquerda se enfrentar à ultradireita”.[1] Mesmo com o tiro saindo pela culatra, o PT dobra a aposta.
Nesse contexto, a insinuação de Lula de que chamará o povo para barrar nas ruas as reformas liberais não passa de bravata compensatória para, simultaneamente, contentar militantes frustrados e cacifar-se junto à burguesia como apaziguador das massas. A história não deixa margem para qualquer ilusão. No governo, o PT impulsionou o neoliberalismo em marcha lenta. Na oposição, aplainou o caminho para o neoliberalismo selvagem. A passividade do PT e da CUT foi elemento fundamental para a aprovação das reformas que desfiguraram a CLT, congelaram por vinte anos os gastos sociais e desmantelaram a previdência social. Não há por que imaginar que o partido abandonará a oposição bem comportada, que não questiona as regras viciadas do jogo e aposta tudo no desgaste dos governantes na esperança de substituí-los mais à frente.
A ausência de reflexão sobre os rumos adotados no passado não só impede o PT de compreender suas responsabilidades na geração da monumental crise que mina o sistema político, como também bloqueia completamente sua capacidade de entender a mudança de qualidade do momento histórico. A crise terminal da Nova República criou novos desafios. A disputa política não está mais circunscrita ao braço de ferro entre a esquerda e a direita da ordem — PT X PSDB -, pois coloca na ordem do dia a necessidade de uma completa redefinição da própria ordem.
A guerra de vida ou morte entre o “velho” e o “novo” opõe as forças políticas que procuram dar uma sobrevida à democracia de cooptação à coalizão de ultradireita que, em nome de uma falsa cruzada moralista, está destruindo irremediavelmente a Constituição de 1988. Tal disputa não pode ser dissociada da luta pela definição do caráter do regime político que substituirá a moribunda Nova República. Digladiam-se projetos antagônicos: de um lado, a solução autoritária (o projeto impulsionado pelas classes dominantes); e, de outro, a solução democrática (a única capaz de contemplar os interesses das classes subalternas). A incapacidade desta segunda alternativa de se apresentar nas eleições de 2018 acabou abrindo caminho para que a consígnia “intervenção militar”, encarnada por Bolsonaro, surgisse como única solução para o colapso das instituições da Nova República.
A polarização da luta política entre duas figuras carismáticas — o cristo e o anticristo — em nada contribui para a construção de uma resposta democrática à crise terminal da Nova República. Ao contrário do postulado pela apologia petista, o antagonismo entre Lula e Bolsonaro não equivale à oposição entre civilização e barbárie. Ainda que Bolsonaro abrace explicitamente a barbárie como distopia, o projeto político encarnado por Lula não representa uma superação democrática da crise da Nova República, mas um esforço desesperado de dar sobrevida a um regime político falido.
No interregno entre a morte do velho e o nascimento do novo, abrem-se brechas para todo tipo de morbidez. É onde estamos. A polarização apaixonada entre Lula e Bolsonaro é funcional para ambos, mas em nada contribui para uma solução democrática, de baixo para cima, para a crise política que envenena a vida nacional. Lula não é o oposto de Bolsonaro. O segundo representa a negação do primeiro — a transição para uma solução reacionária para a crise política. O primeiro, a falsa ilusão de que a volta ao passado teria o poder de superar o profundo ressentimento e frustração de expressivos contingentes da população com as promessas vazias da Constituição Cidadã, desobstruindo o caminho para um futuro glorioso. A antipolítica alimenta-se dos ressentimentos e frustrações com a Nova República.
A repetição do padrão binário da campanha eleitoral de 2018, num contexto ainda mais avançado de degradação da vida nacional, deixa os brasileiros numa sinuca de bico. A política explícita de desmanche do que ainda resta das estruturas republicanas do Estado nacional pelo governo Bolsonaro, com o irrestrito apoio do Congresso Nacional, introduz um elemento de urgência e de radicalidade que ultrapassa completamente o horizonte convencional da institucionalidade vigente. Sem uma vigorosa “intervenção popular”, que coloque em cena os interesses estratégicos das classes trabalhadoras, não há como deter a escalada autoritária.
A crise social é aguda. Um dia ela irá para as ruas. A tarefa da esquerda contra a ordem é soprar a brasa à espera de que os trabalhadores saiam do imobilismo e criem as condições subjetivas para a superação do gravíssimo impasse histórico que ameaça o futuro da sociedade brasileira como projeto civilizatório. A tarefa primordial é apontar que as alternativas reais passam pela deposição do presidente, pela revogação de todas as contrarreformas de Temer e Bolsonaro, pela derrota da política econômica neoliberal e pela refundação, de baixo para cima, do Estado brasileiro. Nesse contexto, ganha grande importância o Dia Nacional de Mobilização por empregos, direitos e pela soberania nacional, convocado pela CSP Conlutas para dia 5 de dezembro.
[1] https://www.conversaafiada.com.br/politica/altman-civilizacao-x-barbarie-e-o-segundo-turno-ideal-1
Contrapoder, 02 de dezembro de 2019.