Zé Dirceu: as referências perdidas.

José Dirceu figura no imaginário de setores da juventude de esquerda, em especial nos jovens que se referenciam no Partido dos Trabalhadores, como o símbolo máximo do autêntico militante socialista. Sua trajetória no movimento estudantil, a prisão, o exílio durante a Ditadura, a estada em Cuba, a clandestinidade, a construção do PT, corroboram para a constituição da insígnia que Dirceu se tornou na cabeça de muitos.

Não sou afeito a lendas ou heróis, mas sou adepto da leitura de biografias. Recentemente li “Zé Dirceu — Memórias Volume 1”, editado pela Geração Editorial em 2018. A autobiografia de José Dirceu de Oliveira e Silva é dividido em 35 partes. São 495 páginas. O auxílio do jornalista Fernando Morais na assessoria da obra mostrou-se preciosa: apesar de burlescos autoelogios, a leitura é fluida e agradável.

Dirceu que foi preso político na Ditadura, após idas e vindas, está novamente preso. O retorno à detenção ocorreu em maio de 2019, via decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que negou um recurso da defesa na segunda condenação dele no âmbito da suspeita Operação Lava Jato [1]. Contudo, o objetivo deste artigo não é discutir os julgamentos do Dirceu pelos tribunais brasileiro, mas suas impressões sobre as figuras de José Sarney e Plínio de Arruda Sampaio, o que expressa, em certa medida, sua visão política: mais objetiva, menos ideológica.

Dirigente-máximo do PT, deputado estadual e federal por São Paulo e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro mandato do Governo Lula. Essa é a trajetória política de Dirceu. O caminho do ex-ministro de Lula, foi pavimento pela luta política e por uma mudança abrupta de sua visão de mundo que se deslocou da luta pelo socialismo a conciliação de classes, nos marcos da institucionalidade. Dirceu mostrou-se um articulador de conciliações, afeito a coalizões mais pragmáticas que programáticas. O consórcio de poder forjado e articulada com o empresário José Alencar, levou Lula a Presidência em 2002. Mas, as relações com a nata do empresariado nacional também forneceu a munição que levou Lula a prisão.

Apesar de controverso, Dirceu não esconde quem é, em sua biografia. No máximo, pode ser acusado de omissões. Em 1992, o então Secretário Geral do petismo, posicionou-se contra a tática do “Fora Collor”, por entender que essa posição fazia o PT misturar-se com os partidos da direita e isolar-se na sociedade e no Congresso Nacional. Dirceu também foi favorável a expulsão da Convergência Socialista (CS) do PT, justamente por defender a derrubada do presidente Fernando Collor de Mello [2]. Esses episódios não aparecem na sua biografia, mas marcaram sua história.

Quando Dirceu trata do seu ingresso na Câmara em 1991 e de suas relações políticas com José Sarney, este encobre sua posição original, contrária ao “Fora Collor”, e, aponta para si mesmo na busca de votos pelo impeachment, além de tecer um corolário de elogios ao “democrata” Sarney, aquele que “não faltou com Lula”:

Desde 1991, quando assumi o mandato de deputado federal pela primeira vez, mantive convivência de respeito com Roseana Sarney, aproximando-me também de seu pai. No impeachment de Collor, trabalhamos juntos na busca de votos na Câmara. Trocávamos ideias e avaliações sobre o executivo, o legislativo e o país. Minha posição sobre Sarney era clara: apesar do passado na Arena e na UDN, como presidente foi democrático, garantindo a transição e a Constituinte. Defendeu o presidencialismo e seu mandato de cinco anos — sem nosso apoio –, legalizou os partidos comunistas, legitimou as centrais sindicais, manteve os militares nos quarteis, no profissionalismo e na obediência à hierarquia. Sarney reatou as relações diplomáticas, comerciais e políticas com Cuba rompidas desde o golpe militar de 1964. Era complicado sustentar tal atitude no PT e eu não me arrependo, o tempo me deu razão. Sarney não faltou com Lula e seus governos. Sem ele, jamais teríamos maioria no Senado” [3].

Sarney tornou-se presidente pelo mau destino, sem eleições diretas e após a morte trágica e misteriosa de Tancredo Neves. Sarney é um senhor feudal, um coronel latifundiário, chefe de uma oligarquia, criminoso, a face e a expressão acabada do fisiologismo mais torpe. Sarney é um pesadelo coletivo da nação e particularmente do Maranhão, então um dos estados mais miseráveis do país, sob o seu beneplácito. Dirceu ignora a história, seus olhos só estão abertos e gratos aos votos que um homem sórdido garantiu no Senado. O resto é descartável. Definitivamente, Sarney não pode ser boa referência a um socialista, não pode ser boa referência a um autêntico democrata, aliás: não pode ser referência a um homem honesto.

Considerando Sarney uma figura de proa da redemocratização, pari passu, Dirceu define Plinio de Arruda Sampaio, um “aristocrata esclarecido”. Plínio dedicou a vida a militância política de esquerda e aos estudos políticos sobre o Brasil, foi candidato a Presidência pelo PSOL em 2010. Dirceu, reconhece a destacada trajetória de Plínio, mas ostenta um tom rancoroso e uma caracterização de “aristocrata” é absolutamente desconectada da realidade.

Excelente planejador, culto e austero, Plínio pecava pelo burocratismo e pela ilusão de que se bastava. (…) Presidiu a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), da qual foi um dos fundadores. No fundo, era um aristocrata esclarecido. Em 1989, participou da campanha de Lula e adotou uma postura elitista e superior quando o candidato se saiu mal no segundo mano a mano na TV contra o Collor” [4].

Quem teve um passado de esquerda e considera José Sarney um democrata e Plínio Sampaio um aristocrata, é um sujeito que perdeu as referências, transitou de classe e apostou todas as fichas no jogo da institucionalidade (que inevitavelmente é burguesa). Dirceu ganhou uma pequena fortuna com consultorias, voltou a cadeia, perdeu as referências e se esqueceu que os fisiologistas, tal como os exércitos mercenários citados por Maquiavel em O Príncipe, que garantiram maioria congressual a Lula da Silva, articularam o conluio que depôs Dilma Rousseff com o golpe de 2016.

Dirceu talvez tenha sido uma referência para uma boa parcela da juventude brasileira de esquerda. Entretanto, quando uma referência perde suas próprias referências, a história e a vida geralmente lhe atribuem uma menção, não muito honrosa, no rodapé da novela contemporânea da política brasileira.

Modesto Neto é historiador, cientista social, professor do Departamento de História da UERN, autor de “A democracia no Brasil” (Gramma Editora, 2018), dirigente do PSOL-RN colunista do Contrapoder.

Notas

[1] — José Dirceu volta à prisão por determinação da Justiça; relembre a trajetória do petista. BBC News. 17 de maio de 2019. In: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304842.

[2] — Enfrentamento e ruptura: a expulsão da Convergência Socialista do PT. Por Diego Cruz. Site do PSTU. In: https://www.pstu.org.br/enfrentamento-e-ruptura-a-expulsao-da-convergencia-socialista-do-pt/.

[3] — Zé Dirceu — Memórias Volume 1 — Geração Editorial. 2018, p. 320.

[4] — Zé Dirceu — Memórias Volume 1 — Geração Editorial. 2018, p. 264–265.

Modesto Neto

Modesto Neto é historiador, mestre em Ciências Sociais pela UFRN, atuou como professor na UERN e FACESA, autor de "A democracia no Brasil" (Gramma Editora).

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