Uma trilha de rebeliões

Mauro Luis Iasi

“Qualquer desatenção, faça não pode ser a gota d’água”
Chico Buarque

Os trabalhadores sempre resistem à dominação e a exploração que lhes é imposta. Cotidianamente esta resistência assume várias formas, desde manifestações culturais como o canto, as danças, o humor, o desprezo pelos poderosos, até formas mais diretas como manifestações e greves pontuais. Mas, há momentos em que esta resistência transborda em rebeliões e insurreições, como aquelas que acenderam o rastilho de pólvora em nosso sofrido continente.

No Haiti, em Honduras, de forma avassaladora no Equador e agora no Chile. Devemos destacar dois aspectos nestas revoltas: sua aparente surpresa e a manifestação violenta através da qual se expressa. Os dois aspectos estão interligados, portanto, analisemos mais detidamente.

As classes dominantes confiam em seu enorme poder, não sem razão. Tem à seu dispor meios eficientes de repressão e manipulação, controlam as formas de governo e os meios para legitimá-las, e, através da ideologia, fazem com que os dominados aceitem como natural e inevitável a ordem de exploração em que vivem. Desta maneira, acabam por acreditar que a roda da opressão pode sempre dar mais um aperto que não provocará nada mais que a resistência de sempre, nos limites da ordem.

Entretanto, aqui se manifesta um dos momentos do movimento dialético da realidade: a transformação da quantidade em qualidade. Não se trata de nada novo, um aumento de passagem, um governo que se empenha em ser descaradamente grotesco na defesa dos mais ricos e poderosos, um plano de austeridade que penaliza os pobres para salvar os ricos, uma repressão policial, um descaso jurídico. Uma gota d’água que transborda o copo, uma ofensa que desperta a raiva, um silêncio que provoca o grito.

Sartre (1979) nos fala que estamos sempre submetidos em um campo de impossibilidades, de barreiras que nos oprimem. É impossível viver sem vender nossa força de trabalho, é impossível vende-la sem nos rebaixar à condição de coisa, é impossível revoltar-se contra um poder que se apresenta indestrutível, a realidade se apresenta como uma impossibilidade. Entretanto, em certas circunstâncias, a realidade/impossibilidade se impõe de tal forma que se a respeitamos o que fica impossível é a vida, não apenas no sentido físico da existência, mas a dignidade. Para o filósofo francês a mudança ocorre quando a impossibilidade é ela mesmo impossível.

Augusto César Sandino (1895–1934) dizia que é preferível morrer lutando que viver de joelhos. É disso que se trata. Aqueles que suportam a exploração e a opressão no dia a dia, que comportadamente se dirigem ao matadouro da acumulação de capital, ao altar dos sacrifícios onde sua vida é oferecida ao deus mercadoria, explodem em ira, em ação, e é neste ato que se descobrem como força coletiva, como superação da fragmentação individual impotente, se tornam rebelião, se fundem em um ser potente e ameaçador que enfrenta as impossibilidades, rompe o campo prático inerte em que se inseriam e abre o caminho livre da práxis.

A ordem entra em pânico, porque ela procura os agitadores, os líderes, quem está por trás daquele gigante que se levanta. A ordem está sempre pronta para a insurgência, mapeia os revolucionários, os que mantiveram a crítica em alto enquanto as massas dormiam o sono da alienação, apontavam culpados, indicavam caminhos, organizavam-se. Em Cuba, quando buscavam pelos autores intelectuais do assalto ao quartel Moncada (1953) e das rebeliões que tomavam as ruas contra o Ditador Batista, encontraram homens e mulheres rebeldes que afirmaram que o autor daquilo era José Martí, líder da primeira guerra de independência (1895–1898) e morto em 1895. Imediatamente a polícia emitiu uma ordem de prisão para José Martí. Nas rebeliões de junho de 2013 no Brasil a polícia saiu a procura de um tal de Mikhail Bakunin.

As massas, no entanto, explodem de maneira espontânea, objetivamente. Como as águas revoltas de um rio oprimido por suas margens, como disse Brecht, mas, como um rio, voltam ao seu rumo lento quando passa o temporal. Quando a objetividade de uma crise e a reação das massas encontram ou produzem um elemento consciente, quando encontram aqueles que sempre resistiram na luta contra as forças que nos oprimem, quando a irrupção da revolta consegue ver adiante e, sabendo de sua força, concentra seus esforços para derrubar as classes dominantes, destruir as bases de seu poder e mudar as condições sobre as quais se assenta seu domínio, aí, em certas condições, a insurreição pode virar uma revolução.

Toda revolução é fruto do encontro de condições objetivas e subjetivas, mas o padrinho deste encontro é sempre a arrogância dos poderosos e a crença em sua invencibilidade.

Mauro Iasi

Educador popular do NEP 13 de Maio, professor Associado da Escola de Serviço Social da UFRJ e pesquisador do NEPEM. Membro do CC do PCB.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *