Só a intervenção popular pode salvar o futebol do reacionarismo galopante!

“O futebol deveria ser o contrapoder ao poder das taras dominantes”.

(Manuel Sérgio, Filósofo do Futebol).

Com a volta a campo do “partido da ditadura”, o uso político do futebol voltou a ser assunto nacional… nisso não há novidade nem exclusividade nacional, o mais humano dos esportes é também o mais político, para o bem e para o mal. Ou alguém duvida que é político o discurso histórico de Megan Rapinoe ao receber, com todos os méritos, o prêmio de melhor jogadora do mundo em 2019, criticando o machismo do esporte, a desigualdade nos prêmios pagos a homens e mulheres, a homofobia e a discriminação? Poucos atletas poderiam protagonizar um discurso como o de Rapinoe, direta, inteligente e perspicaz, mostrou que o futebol é muito mais do que só mais um esporte, deu seu recado. É político o gesto de Taison ao reagir contra ofensas racistas na Ucrânia e mostrar o mais polêmico dos dedos da mão para os agressores racistas[1]. É política a voadora de Eric Cantona! É política a atitude da seleção nacional do Chile ao se recusar a jogar uma partida em solidariedade ao momento histórico de seu país, ou de Valdívia, o marrento ex-jogador do Palmeiras, que distribuiu “empanadas” aos manifestantes logo no início das manifestações que há semanas mobilizam o Chile. A criação em praticamente todos os times brasileiros de torcidas antifascistas é o mais claro sinal de que os torcedores veem com preocupação o uso de seu time de coração pelos setores saudosos da ditadura militar.

E não é pra menos… com Bolsonaro à frente a tropa do atraso procura dominar o campo de jogo e as arquibancadas como já o fizera décadas atrás e procura com isto sequestrar o esporte mais querido no país e com ele a hegemonia popular. Bolsonaro é um caso à parte, oportunista, falsário e desleal, quando foi em Goiás, vestiu a camisa do esmeraldino, se diz Palmeirense e Botafoguense, mas já se fez fotografar com todas as camisas dos times cariocas, levou o atleticano do Paraná, Sergio Moro, ao Mané Garrincha e o fez vestir a camisa do Flamengo, e isto justamente no momento em que Moro perdia parte de sua aura de justiceiro com as revelações do The Intercept. É clara a tentativa de se aproveitar do sucesso esportivo dos clubes. O mesmo Bolsonaro entrou no campo de jogo para entregar a Taça de campeão brasileiro de 2018 ao Palmeiras, gesto repetido pelo igualmente detestável “Major Olímpio” na entrega da Taça do Campeonato paulista ao Corinthians 2019 e deputados do PSL na entrega da taça do campeonato carioca ao Flamengo 2019. É clara a adesão das diretorias…

No clube de maior torcida do Brasil reina o oportunismo. O governador do Rio Wilson Witzel se declara corintiano, mas não pensa duas vezes em se deixar fotografar com a camisa do Flamengo, plagiando Moro e Bolsonaro, todos flamenguistas de ocasião. Estivesse o time de Jorge Jesus na zona de rebaixamento seria o queridinho dos canalhas? “Torcer” por um time tem reverberações dolorosas, quase uma enfermidade o sofrimento pelo time, principalmente nos momentos de maior dificuldade, mas esses sentimentos não combinam com os oportunistas, única e exclusivamente atrás de propaganda bancada pelos clubes, tentam se associar apenas às vitórias, às taças, aos anos memoráveis. Só aparecem nos momentos vitoriosos, são incapazes de lealdade! Mas a proximidade entre a diretoria do Flamengo e políticos de ultradireita (como o deputado bolsonarista que quebrou a placa em homenagem à vereadora rubro-negra Marielle Franco[2]) é uma vergonha para a sua torcida. É um verdadeiro rebaixamento moral do clube! Em reação a tal proximidade com saudosos da ditadura, parte da torcida iniciou uma campanha pela reconstituição, na Gávea, do memorial a Stuart Angel, atleta do remo do clube assassinado pelo governo militar.

Futebol é 50% torcida para o seu time, 50% zoação dos outros. Daí que parte das torcidas esteja mais interessada no que acontece nos campos dos outros clubes do que nos seus próprios, mas o fato é que só a sua união pela defesa do caráter popular do esporte pode impedir que se repita o quadro que já tivemos na ditadura[3]. Pois na ditadura, particularmente nos anos Médici, o futebol, e particularmente a seleção brasileira, virou arma de guerra pela hegemonia popular, com colaboração ou omissão de todos os clubes nacionais, alguns premiados com estádios, além de atletas, alguns presenteados com carros populares e outras benesses. Quadro semelhante se desenhou na América Latina, não faltando casos em que clubes colaboraram com torturas e desaparecimentos políticos.

Como é um “traíra”, Bolsonaro troca de clube como troca de partido, é um “vira casaca” na gíria do futebol, mas não apenas no esporte e na política o miliciano é inconsistente, troca de religião de acordo com o público a que se dirige e troca seus aliados na mesma velocidade com que muda a camisa do time da moda, para fazer média com os desavisados. Em tudo isso não há novidade… Vexame mesmo é o papel prestado por diversas diretorias de clubes, e citamos aqui só os casos mais emblemáticos. Como o do Santos, que convidou Bolsonaro para ver uma partida da Vila Belmiro, patético, foi vaiado clamorosamente pela torcida. Renato Gaúcho, falastrão e bolsonarista, convidou o “seu Jair do 58” para ver o seu time enfrentar o Palmeiras na próxima rodada do campeonato nacional. O que se espera da torcida do Palmeiras é o que fez a torcida do Santos, vaia neles, no mínimo… Cabe destacar a postura do treinador do Santos, Jorge Sampaoli , que enfrentou a diretoria do clube e se recusou a saudar o político.

O presidente miliciano até ameaçou ir à final da Libertadores da América no Chile, dá para imaginar o tamanho da indignação que tal fato causaria? Um apoiador de Pinochet em pleno estádio Nacional, que ainda guarda marcas do terror da ditadura para que jamais se esqueça? Mesmo sem a presença de Bolsonaro, com a Finalíssima transferida para o Peru, protestos também são esperados, e não poderia ser diferente. O futebol fará de Lima o centro continental das atenções no próximo final de semana e a onda de indignação que toma a América Latina não pode deixar de incendiar o esporte preferido dos povos do continente. Só a intervenção popular pode salvar o futebol do sequestro orquestrado pelos reacionários de plantão! Acerta o movimento popular ao mirar o futebol como momento privilegiado para manifestações, bloqueios e greves. E acertam as torcidas ao criar agremiações antifascistas para fazer frente ao estado de sítio pretendido pelos milicianos aos clubes brasileiros. Paz entre as torcidas, guerra aos patrões!

[1] Os agressores de Taison e Dentinho foram fortalecidos pelo Juiz que o expulsou, o que mostra que parte significativa do problema do racismo no futebol está na falta de caráter da FIFA que pensa o futebol como mero “espetáculo” a ser comercializado, punindo o agredido e não os agressores.

[2] Ver reportagem de Mauro Cézar sobre o ocorrido: https://blogdomaurocezar.blogosfera.uol.com.br/2019/04/01/deputado-que-quebrou-placa-com-nome-de-marielle-festeja-com-o-fla-no-campo/

[3] O excelente site trivela.com.br traz um artigo intitulado “O que seu clube fez durante a ditadura”, que mostra que de grandes a pequenos clubes, quase a unanimidade colaborou ou foi conivente com a ditadura militar de 1964. Cf. https://trivela.com.br/o-que-o-seu-clube-fez-durante-ditadura/ .

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia da UFCG, lateral do Ponta Firma FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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