Salvini e a Lega: avança o perigo neofascista na Itália

Após a II Guerra, falou-se sempre de uma Itália Vermelha e de uma Itália branca -a cor do Vaticano-, para assinalar regiões que votavam com a esquerda comunista-socialista ou com a democracia-cristã. Uma orientação geral que se manteve após o tsunami que liquidou, nos anos 1990, a Democracia Cristã, atingida pela Operação Mãos Limpas, e o PCI, que acelerou sua reconversão social-liberal já avançada com a dissolução da URSS. A Úmbria, no centro-sul italiano, com pouco menos de um milhão de habitantes, foi sempre fortaleza da esquerda, desde as primeiras eleições pós-fascistas, em 1946.

A Úmbria continua a ser o coração verde da Itália
Sim, mas agora verde liguista!

Nas eleições regionais da Úmbria de domingo, 27 de outubro de 2019, aliança de extrema-direita, capitaneada pela Lega, de Matteo Salvini, 46, venceu maciçamente, com 57% dos votos. Integravam a coligação o movimento Fratelli d’Italia [Irmãos da Itália], claramente pós-fascista [inspirados no mussolinismo], em fortalecimento em toda a Itália, e o partido de Berlusconi, em regressão. Em 2015, a Lega Norte [hoje Lega ] obteve apenas 14% dos votos naquela região. As prefeituras dos grandes centros industriais da Úmbria -Perugia, Orvieto, Termi, etc. — já estão em mãos da direita.

A aliança dita de centro-esquerda recebeu menos de 38% dos votos. Ela era dirigida pelo PD [ex-PCI], social-liberal, aliado sobretudo ao Movimento 5 Estrelas e ao ecologismo. Para ampliar o eleitorado, o centro-esquerda apresentou como candidato empresário apenas chegado do centro-direita. Em relação às eleições de 2015, grosso modo, uns 20% dos eleitores de esquerda votaram na extrema-direita. Muitos eleitores de esquerda e do 5 Estrelas abstiveram-se. A esquerda comunista e a extrema esquerda anticapitalista, separadas, ficaram com menos de 2%.

Uma Itália neofascista?

É exemplar a importância desses resultados eleitorais devido ao fato de que, em agosto de 2019, o Movimento 5 Estrelas abandonou, em hábil conchavo político, sua parceria antinatural com a Lega , no governo italiano, para formar um outro governo programaticamente monstrengo, com o PD. Salvini, da Lega, forçara a queda do governo esperando voltar como poderoso primeiro ministro, com ou sem o 5 Estrelas. O pouco mais de um ano de governo Lega -5 Estrelas dera-se no contexto de contradições viscerais.

A Lega é movimento direitista, anti-esquerdista e racista. Exige crucifixo nos locais públicos e ataca os ciganos, mesmos os italianos. Matteo Salvini, dirigente comunista quando jovem, consagrou-se como ministro do Interior no passado governo. Interrompeu o desembarque da incessante migração clandestina mediterrânea, que apontou como introdução de trabalhadores desesperados para serem explorados, sobretudo no sul da Itália, por um prato de comida. A imigração aumenta o desemprego e o subemprego, enfraquece os sindicados e partidos políticos, pesa sobre os gastos sociais, cria classe de modernos escravos assalariados. Salvini consagrou-se quando do confronto com os governos alemão e francês sobre os desembarques selvagens no sul na Itália. Sua política recebe o apoio dos racistas e também dos trabalhadores italianos angustiados com a situação que vivem e que vem na imigração a causa de seus infortúnios.

O Movimento 5 Estrelas, do cômico Beppe Grillo, 71, também ex-comunista, prometeu dar a palavra ao cidadão e manteve rígido verticalismo. Negou a divisão esquerda-direita e mergulhou na confusão programática. Não poucos esquerdistas aderiram ao movimento. No governo, Luigi Di Maio, 33, ministro do Trabalho, em competição com Salvini, combateu a precarização do trabalho, a demissão sem justa causa, a expatriação de empresas italianas financiadas pelo governo. Sobretudo, concedeu salário aos desempregados e completou os dos mal pagos [“Renda Cidadã”]. Essas iniciativas, mal vistas por segmentos da classe média, foram desnatadas pela Lega, pressionada por empresários liguistas. As medidas não receberam o apoio decidido do PD, ex-Partido Comunista, que se opôs também ao controle da imigração por Salvini, apresentando razões humanitárias.

Maré direitista

A Úmbria e os últimos resultados eleitorais anunciam a probabilidade de um próximo governo majoritário de extrema-direita na Itália, algo que jamais ocorreu no país após 1945. É bastante difícil que o atual governo, com o PD e o 5 Estrelas, com apoio público em queda livre e com contradições programáticas insolúveis, se mantenha até as eleições gerais de 2022. Além da Úmbria, em 2019, a Lega e a extrema-direita já conquistaram, entre outras regiões, a Lombardia, o Veneto, o Piemonte, o Friuli Venezia Giulia, a Basilicata.

O PD mantém-se no governo de sete regiões, entre elas, alguns bastiões da Itália Vermelha, no centro-norte italiano, como a Emília-Romanha e a Toscana. No Sul, a Calábria, a Campanha e a Puglia também ainda estão governadas pelo centro-esquerda. No entanto, das sete regiões, seis terão eleições em 2020, entre elas, em 26 de janeiro próximo, a Emília-Romanha, um dos berços do movimento operário e camponês italiano, coração da guerra vitoriosa contra o nazifascismo dos guerrilheiros comunistas, que cantavam a hoje internacional Bella Ciao.

A migração do voto popular para a extrema-direita não é ação ocasional ou impensada, nascida de intoxicação da grande mídia — que na Itália apoia fortemente o PD. Ela não é vontade passageira de experimentar um candidato novo, mesmo exótico, que substitua os responsáveis pela situação nacional insustentável, como nas eleições de 2016 no Brasil. O avanço do neofascismo na Itália não conhecerá o rápido fim do apoio popular a Bolsonaro, que desandou de saída, feito maionese mal iniciada.

A cartada nacionalista

Milhões de italianos se voltam literalmente para o neofascismo ou o pós-fascismo devido às suas propostas políticas antiliberais e antiglobalização. Esses movimentos se opõem à governança supranacional, pela União Europeia, das nações mais frágeis do continente — Espanha, Portugal, Itália, Grécia, etc. Governo europeísta sob o tacão do Bundesbank [Banco Central Alemão], expressão do capital hegemônico no Velho Mundo. Ao governo passado e presente sequer lhes foi permitido definir livremente seu orçamento, ao igual do que ocorre em Portugal, na Grécia, etc.

O neofascismo e o pós-fascismo italiano se propõem como nacionalistas e autonomistas, defendendo medidas desenvolvimentistas que reergam a economia da Itália. Denunciam a submissão da Itália aos USA, à Alemanha, à França. Exigem a retomada de relações prioritárias com a Rússia de Putin e com a China de Xi. Sob a oposição da burocracia da União Europeia, o governo passado iniciou a adesão à Nova Rota da Seda. Os neofascistas e pós-fascistas defendem o fim do desembarque incessante de emigrantes no sul da Itália, que Salvini conseguiu interromper fortemente, durante o governo passado.

Na era da globalização, a Lega tendencialmente neofascista e Fratelli d’Italia pós-fascista propõe, não importa se demagogicamente e em um viés conservador, literalmente grande parte do programa vilmente abandonado pela esquerda parlamentar italiana, com destaque para o ex-PCI. O PD, reconvertido ao social-liberalismo, defende as maravilhas do capitalismo globalizado, da integração à União Europeia capitalista, etc. Abandona as reivindicações operárias e sociais, centrando-se nas liberdades civis, no ecologismo, etc., tudo associado a compensações sociais limitadas.

Os novos aliados: Zingaretti (PD) e Di Maio (M5S)

Servidão voluntária

Na Úmbria, a aliança centro-esquerda –M5S, PD, ecologistas-, propôs programa nos fatos reforçando a integração à União Europeia e ao grande capital internacional. Um repeteco das medidas liberais que levaram ao desastre a sociedade italiana, como tantas outras através da Europa e do mundo. Programa que incendiou a Grécia e hoje subleva a população no Líbano, no Chile, no Equador, no Haiti e por aí vai. Qualquer semelhança com a ação dos grandes partidos eleitorais ditos de esquerda do Brasil e de seus governos passados é mera coincidência. Defendendo programa nacionalista, desenvolvimentista, anti-imperialista, etc., a Lega e o Fratelli d’Italia são capazes de conquistar e manter largo apoio nas classes médias e mesmo populares. Eles são a verdadeira cara do neo-fascismo e pós-fascismo na era da globalização.

Os acontecimentos italianos dissolvem as incompreensões sobre o pós-fascismo e o neofascismo tão habituais não apenas no Brasil. Não podemos definir de neofascistas e pós-fascistas movimentos, como o bolsonarismo, incapazes de interpretar, mesmo demagogicamente, os anseios de largos segmentos populares e médios, devido a uma orientação antinacional, antidesenvolvimentista, pró-liberal e pró-imperialista. Esses movimentos contra o fortalecimento da nação, mesmo em viés reacionário, autoritário e antioperário, não conseguem organizar e sustentar um real apoio de massa. Por mais “fascistas” que sejam suas lideranças, no sentido corriqueiro do termo.

Mário Maestri

Historiador, autor de: Revolução e contra-revolução no Brasil. 1530–2018.

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