Que Mészáros tem a nos dizer que talvez seja inspirador face à catástrofe da ascensão do bolsonarismo (derrota política e eleitoral) antecedida pela capitulação do PSOL ao lulismo (derrota política)
“Ser radical é ir à raiz dos problemas”
Karl Marx
Em resposta ao discurso neoliberal da ideologia dominante de que “não há alternativa” (TINA — There Is No Alternative) ao regime do capital, István Mészáros postula, em Para além do Capital (1995) e Atualidade histórica da ofensiva socialista (2010), que, “embora passe a ser uma dolorosa obviedade o fato de as alternativas do capital hoje se limitarem cada vez mais a flutuações manipuladoras entre variedades de keynesianismo e monetarismo, com movimentos oscilatórios cada vez menos eficazes, que tendem de maneira perigosa ao ‘repouso absoluto’ de uma contínua depressão, a recusa socialista à falta de alternativa deve ser articulada positivamente com objetivos intermediários, cuja realização possa promover avanços estratégicos no sistema a ser substituído, mesmo que apenas parciais num primeiro momento”.
O que István Mészáros está a nos dizer tem uma apreciável complexidade dialética. Estamos diante do projeto de uma ofensiva propositiva que se configura, no plano estratégico, como um reformismo revolucionário (conceito de Carlos Nelson Coutinho). E isso porque, a seu juízo, “o que decide o destino das várias forças socialistas na sua confrontação com o capital é o grau de sua capacidade de fazer mudanças tangíveis na vida cotidiana, hoje dominada por manifestações ubíquas das contradições subjacentes”.
István Mészáros fala em “combinar, num todo coerente, com implicações socialistas em última análise inevitáveis, uma grande variedade de demandas e estratégias parciais que, em si e por si, não precisam ter em absoluto nada de especificamente socialista”. Ele pondera que essas demandas não atendidas, apesar de não serem demandas propriamente socialistas, consideradas em conjunto são “partes do complexo global que as reproduz de modo constante como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis”. Por isso, considera que “o que decide a questão é sua condição de realização”. E adverte que “o que está em jogo não é a enganosa ‘politização’ dessas questões isoladas, […] mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas ‘não socialistas’ largamente automotivadoras no front mais amplo possível”.
Vale dizer: consideradas isoladamente, cada demanda vale pouco; vistas em conjunto, são incompatíveis com o capitalismo. Tornam-se anticapitalistas porque contrariam a lógica do capital ao colocar em primeiro plano o valor de uso em detrimento da autovalorização do capital. E é só do ponto de vista da totalidade que podemos apreender o potencial revolucionário delas. Daí o pluralismo das formas de luta, consciência e organização engajadas na ação comum de forças diversas que se articulam na prática (ação comum que não implica unificação, mas apreço à diversidade).
István Mézzáros lembra a crítica de Engels a Wilhelm Liebknecht, principal redator do Programa de Gotha: “Da democracia burguesa ele trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação”. Marx alertou para o alto custo dessa “mania de unificação”. Em seu lugar, recomendou a fidelidade aos princípios socialistas e a negociação de programas de ação concretos, viáveis e flexíveis em torno dos objetivos comuns. No entanto, paradoxalmente, essa “mania de unificação” grassou por longo tempo nas esquerdas, resultando nas manipulações das bases pelas burocracias partidárias e sindicais, e nas concessões de princípio ao capital.
O problema dessa “mania de unificação” se coloca na atualidade sob o disfarce da consigna lulista de “frente democrática” ou “frente antifascista”, ecoada mais uma vez pelos mesmos setores do PSOL que fabricaram o fiasco da anticandidatura Boulos (comparada às campanhas anteriores do PSOL, esta foi de longe a mais cara e a de menor votação).
Numa entrevista que me concedeu no período petista, Carlos Nelson Coutinho foi preciso:
“[…] a ascensão do PT ao governo, os dois governos Lula foram trágicos para a esquerda. A ditadura nos reprimiu, nos prendeu, nos torturou, obrigou muitos ao exílio, mas não desmoralizou a esquerda. E esses dois governos Lula ─ não só pelo escândalo do mensalão, mas pelo fato de que realizam políticas claramente a serviço do grande capital, mantêm uma hegemonia neoliberal clara ─ desmoralizaram a esquerda. E isso nos obriga a um esforço muito grande para recolocar na ordem do dia, particularmente nós do PSOL, uma proposta que retoma de certo modo a proposta do PT, mas que tem que ir mais além e evitar os riscos a que esta proposta conduziu. Espalha-se no mundo de hoje o que eu brincalhonamente chamo de americanalhamento da política. Ou seja, há disputa política entre diferentes grupos lutando pelo poder, mas com propostas muito semelhantes, repetindo claramente as políticas dominantes, que é o caso exatamente no Brasil da alternativa entre o PSDB e seus satélites e o PT e seus satélites. O PSOL surgiu, a meu ver, e foi por isso que aderi ao PSOL desde o início, como uma proposta de romper com essa falsa polaridade entre o mesmo.”
A direção lulista do PSOL incorre em dois equívocos. O primeiro é de caracterização do governo Bolsonaro. O segundo, é o erro de Liebknecht.
No capitalismo, a contradição predominante é entre capitalistas e trabalhadores, mas ela vem acompanhada por um conjunto de outras contradições: a concorrência entre os capitalistas individuais, a repartição do mais-valor entre ramos e frações do capital, a contradição entre os interesses imediatos do capitalista individual e os interesses gerais da sistema capitalista em seu conjunto, etc.
É preciso ter presente que uma totalidade não é a soma de suas partes. A contradição entre interesses particulares e gerais é o que enforma o reformismo burguês, que consiste no refreamento dos interesses estreitamente corporativos do capital com vistas a garantir a preservação das condições naturais da existência humana e a reprodução da classe trabalhadora (que são, ao mesmo tempo, condições de reprodução do capital). E não só o reformismo burguês, mas, paradoxalmente, o fascismo também.
Na crise do liberalismo, o fascismo é um poder totalitário que fala pela Nação, colocando-se acima das classes para arbitrar seus conflitos no marco do sistema capitalista. Como diria Gramsci, um poder que realiza, em última instância, os interesses de classe da burguesia, mas sem ir até seus mesquinhos interesses corporativos. Um poder que enxerga a sociedade como um conjunto de corporações e que se propõe a geri-lo no interesse da ordem capitalista. O bolsonarismo, por sua parte, é ultraliberal, assume abertamente o lado do capital contra os direitos do trabalho, serve ao capital indo até seus mesquinhos interesses corporativos. Por isso, ele eliminou o Ministério do Trabalho, ao passo que, numa perspectiva fascista, seria o caso de armar um superministério para regular as relações trabalhistas.
Na caracterização do governo ultrarreacionário de Bolsonaro, a direção lulista do PSOL não entendeu o âmago da questão e se desorientou: primeiro, caracterizou-o como fascista; em seguida, numa guinada sem explicação, como liberal-conservador.
Quanto ao erro de Liebknecht, é bom que fique bem claro de uma vez por todas que unidade se faz entre diferentes que comungam interesses comuns na luta por objetivos concretos. A ação unitária modela a frente, seja ela democrática ou de esquerda, conforme o que se afigure, caso a caso. Uma frente difusa, sem programa concreto, é mero ilusionismo eleitoral. A ascensão do bolsonarismo (ou seja, do extremismo de ultradireita) expressa não só o esgotamento da exquerda lulista e seus satélites (vale dizer, da proposta pseudorreformista, moderada, minimalista), mas também a conformação de um espaço eleitoral destituído de projeto político de esquerda.
Fica a advertência de Lukács: “O proletariado não deve recuar diante de nenhuma autocrítica, pois só a verdade pode levá-lo à vitória e, por isso, a autocrítica deve ser seu elemento vital” [História e Consciência de Classe]. A autocrítica, no caso, é a autoconstrução da opção radical.