Durante as eleições de 2018, foi proposto que o confronto era entre a civilização e a barbárie. Entre Haddad e Bolsonaro. Quase não se falou sobre o golpismo em consolidação. Jurou-se que a vitória de Bolsonaro abriria as portas para maré fascistizante de massa. Milhões de direitistas galvanizados pelo triunfo atacariam esquerdistas, sindicalistas, intelectuais, homossexuais. Com a vitória eleitoral inevitável do golpismo, foram promovidos cursos e intelectuais se especializaram no fascismo. Muitos [que podiam] começaram a pensar no exílio. O Jean Wyllys e a Márcia Tiburi surfaram a onda e foram estudar no exterior, desde onde pontificam sobre a resistência. A consigna após a derrota foi resistir, sem atacar: “Ninguém solta a mão de ninguém”.
O segundo governo golpista se instalou, montou ministério dos horrores, seguiu atacando os direitos da população, como o primeiro, de Temer. As privatizações dos bens públicos e as grandes iniciativas golpistas prosseguiram a trote-galope mas o tsunami dos camisas verde-amarelas jamais se materializou. Já no Carnaval, a rua deu seu veredicto. Milhões de foliões mandaram, em uníssono, o neo-presidente àquele lugar. Em vez de ordenar que suas tropas reprimissem o esculacho popular a porretadas, o neo-presidente postou um videozinho pornográfico. Se fosse vivo, Mussolini perguntaria: — O que é isso, companheiro!?
A Banda de Música do Grande Capital
A destruição das condições de vida e de existência da população e da nação seguiram o roteiro golpista e o consenso eleitoral obtido pelo Mito nas eleições, com apoio da mídia, do grande capital e do imperialismo, seguiu precipitando, apenas com velocidade menor. Em fins de agosto de 2019, apesar da tradicional boa vontade dos órgãos aferidores da opinião pública com o conservadorismo, registrou-se que os desgostosos com o governo superavam os defensores, mesmo passivos, do bolsonarismo. Se as eleições fossem hoje, o “fenômeno” não se elegeria, nem com a banda de música do grande capital.
Os sintomas de enfraquecimento do governo eram anteriores. O bolsonarismo jamais conseguiu construir uma base parlamentar sólida. O golpismo seguiu sendo dirigido no Parlamento por Rodrigo Maia e pelo Centrão, que fizeram não poucas desfeitas ao presidente — Coaf, emendas impositivas, porte de armas, acesso a informação, etc. Políticos, intelectuais e artistas bolsonaristas, em 2018, começaram, em 2019, a virar casaca ou mergulharam na clandestinidade — o deputado pornográfico Alexandre Frota; o cineasta José Padilha; o jornalista Rodrigo Constantino são apenas exemplos excelentes.
Alguns dos ratos mais graúdos, como o MBL e o próprio Temer, já tentam abandonar o barco que faz água. O presidente-vampiro da Paraíso da Tuiuti ganhou a taça da hipocrisia, ao propor que jamais apoiou e que foi sempre contra o golpe, morrendo de amores por Dilma e Lula. Centenas de milhares de direitistas de carteirinha juram agora que votaram no Amoedo, no primeiro turno, e em branco, no segundo. Se olhamos para os lados, já encontramos com dificuldade aqueles parentes que abriram orgulhosos o voto em Bolsonaro. Com os olhos postos em 2022, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, mesmo babando sangue, rompeu com o presidente troca-letras. O governador de Santa Catarina, o comandante Moisés, eleito pelo PSL, já procura um novo partido. Quatro presidenciáveis da extrema-direita — Witzel, Dória, Moro, Mourão — registram a falta de liderança hegemônica do paspalhão do Alvorada. A união da direita, em 2018, no segundo turno, explodirá, já no primeiro, nas eleições de 2020.
As propostas sobre um governo fascista ou semi-fascista, sustentado por base social militante de massas, que pressionaria e se imporia ao Parlamento, mostraram-se fantasias infundadas. Atualmente, elas são mantidas apenas por aqueles que pretendem conviver e se acomodar ao golpismo, domesticando-o, em algo, se possível. Nesse caminho, eles propõem um frente anti-bolsonarista no qual cabem todos, mesmo os direitistas “democratas” e os golpistas “racionais”. Todos, mas todos mesmos, contra Bolsonaro e sua família celular e ampliada.
Bolsominions roxos
Mas se é verdade a proposta perda de apoio, quantos seriam os bolsominions roxos? E sobretudo, quem são eles? Essa tropa seria formada, segundo se propõe em artigos acadêmicos, textos políticos e postagens no Facebook, sobretudo por pobres inconscientes? Seria constituída por desempregados desesperados e por segmentos desfavorecidos da população? No núcleo duro de apoio ao Capitão Nero teriam grande expressão os setores populares desesperados e pouco instruídos, cativados pela demagogia extremista de direita?
Segundo parece, esse retrato falado do apoiador intransigente do presidente iletrado se afasta muito da realidade. Estudo apoiado no levantamento do Datafolha, de 29–30 de agosto, restringiu os adeptos “duros” de Bolsonaro a 12% do eleitorado. E, na outra margem do rio, os opositores sem contemplação, que o veem como a incarnação do mal social, seriam mais de 30%! Ou seja, como vão as coisas, logo a vanguarda da resistência sem contemplações será três vezes superior à dos bolsominions incondicionais!
O perfil dos 12% de adoradores do Mito surpreende mais que a rápida retração numérica de suas filas. O núcleo duro dos seus fanáticos seria formado sobretudo por homens maduros — apenas 5% dos incondicionais tem de 16 a 24 anos, enquanto 19% estariam na faixa de 60 ou mais anos. Portanto, o ideário bolsonariano penetraria com dificuldade a juventude e se aninharia melhor entre os mais idosos. E as mulheres parecem não querer nada com ele, o que já era sabido.
Ricos que querem ferrar os pobres
Apenas 5% dos camisas verde-amarelas duros e puros ganhariam um salário mínimo, enquanto 25% possuiriam renda superior a dez mínimos. Assim sendo, o trabalhador explorado pode até votar no homem, empurrado pela mídia, mas não se abraça e não morre de amores por ele. E já começa sentir a vontade de chutá-lo! No mesmo sentido, o apoiador com formação educacional superior [16%] supera o com apenas o ensino fundamental [12%]. E como o primeiro núcleo é nacionalmente muito inferior ao segundo [apenas 15% dos brasileiros tem um diploma superior], os diplomados seriam uma das trincheiras bolsominions!
Quanto à cor, brancos e pretos [somados aos pardos] se equilibrariam. E, para os que não acreditam na consciência, mesmo inconsciente, da população brasileira, os trabalhadores sem carteira não gostariam nem um pouco do homem [8%], os com carteira, apenas um tiquinho mais [12%], dominando no apoio ao Capitão Nero os empresários [32%]. As donas de casa não o querem ver, contando ele com maior sustentação entre os aposentados. Porém, cruzando os dados, o apoio seria sobretudo entre os bem aposentados! Dentre os 12% dos ainda incondicionalmente fiéis, 23% seriam neopentecostais, porcentagem importante. Os sem religião, ao contrário, seriam 7%, valor que corresponde ao dos descrentes no país — 8%,
Homem, maduro, instruído, bem pago, rico e pentecostal seria o perfil dominante do núcleo duro apoiador de Bolsonaro, fatia reduzida a uns 12% do eleitorado em fins de agosto de 2019. Ou seja, não há contradição social e ideológica entre a pregação e o programa liberal extremada bolsonarista e o setor dominante que o sustenta. Trata-se, portanto, de movimento que tem o apoio eleitoral incondicional dos ricos que querem trotar, no rústico calçamento de pedra do capitalismo brasileiro, ferrando literalmente os trabalhadores e a população.
Porém, esse núcleo duro periga debandar como rebanho de bovinos assustados, enviando o Profeta ao seu redil inicial de milicianos, policiais desviados e militares golpistas. Com o aprofundamento da crise, parte dos atuais intransigentes tende a retrair-se. E os pequenos e médios empresários já estão sendo atingidos na raiz de seus privilégios sociais — suas empresas. Sobretudo, com a fragilização de Bolsonaro como direção do segundo governo golpista, os apoiadores ricos e instruídos migrarão, sem constrangimentos, em direção de liderança de burguesa alternativa. Em movimento de manada, tomarão o sentido contrário na estrada que os levou a aderir ao desconjuntado candidato em 2018.
O Mito Esfaqueado
Bolsonaro tem radicalizado e não moderado seus pronunciamentos estrambólicos, consciente da impossibilidade de conquistar o apoio de larga faixa da população. O que só seria possível com o recuo acelerado do desemprego e melhorias substantivas das condições de vida da população. Como o golpismo aponta em sentido oposto, o Mito esfaqueado centra-se na alimentação-defesa do núcleo duro de seu eleitorado. Com ele, procura proteger-se de substituição vinda do interior do golpismo e impedir que as eleições de 2020 explicitem a crise de seu apoio.
Sobretudo, a reafirmação do bolsonarismo de “raíz” procura constituir um partido de extrema-direita duradouro. Porém, a pregação irracional, misógina, homofóbica, golpista, privatista radical — tendo como guru o astrólogo Olavo de Carvalho e quadros iluminados com os filhos um, dois e três; Damares, a virgem da Goiabeira; Salomão, o Ignorante; Ernesto Araújo, o chanceler de bolso, e tanto outros de igual jaez — não consolida movimento sem o apoio substancial do grande capital, que não aposta em cavalo manco. Ainda mais quando o fuhrer verde-amarelo é um afásico e analfabeto funcional, incapaz de memorizar o hino nacional, após cantá-lo, por anos, ao amanhecer, no quartel de onde foi expulso.
É difícil negar a crescente fragilidade de Jair Bolsonaro. Já um pouco grogue, contra as cordas, não cai de nariz na lona por que ninguém o saqueia forte. O golpismo deixa tudo para depois da aprovação da destruição da Previdência, da reforma fiscal, das últimas grandes privatizações. Mede o custo-benefício de mantê-lo ou substituí-lo antes de 2022. Despreocupa-se com uma queda impulsionada pela população, que mudaria a correlação de forças e debilitaria também o golpe, pois a oposição parlamentar se nega a exigir o “Fora Bolsonaro, eleições limpas já!”. Em verdade, ela tem coisa melhor a fazer. Preocupa-se com a participação nas eleições de 2020, esperando 2022, sem saber muito bem como aquele ano vai nos chegar. Eleger-se, é preciso! Derrubar Bolsonaro e o golpe, não é preciso. [Duplo Expresso, 19.09.2019.]