Depois da bonança, a tempestade

O Brasil hoje vivencia sua segunda experiência histórica de ascensão da extrema-direita após o fracasso do segundo período de hegemonia política da conciliação de classes. O populismo nacional-desenvolvimentista de 45–64 resultou na ditadura militar, o lulismo neodesenvolvimentista ensejou o bolsonarismo em plena democracia burguesa.

Só é possível entender o que passamos hoje em dia a partir de uma crítica dos governos do PT. Crítica não apenas teórica ao passado (o que é muito conveniente para tantos novos convertidos ao lulismo no PSOL). Crítica necessariamente prática para fazer um enfrentamento eficaz a Bolsonaro no momento presente.

O governo federal completa mais de seis meses menos popular e mais fraco do que o imaginado pelo alarmismo de muitos setores lulistas e neolulistas, antes interessados na aliança eleitoral entre PT e PSOL do que em combater Bolsonaro nas ruas. A pauta neoliberal, consenso na burguesia, é encaminhada pelo Centrão no Congresso Nacional. A reforma da previdência avança porque a proposta de capitalização de Paulo Guedes caiu e por ser o PT, nos bastidores, favorável aos ataques à aposentadoria, como se deu em 2003 com Lula (que motivou o nascimento do PSOL).

Apesar das bravatas, a pauta conservadora do governo — que é de Bolsonaro, não da burguesia — é derrotada sucessivamente no Congresso e no Judiciário, para desespero e impotência das redes sociais da extrema-direita. Os neoliberais progressistas, o PSDB e a grande imprensa atacam ferozmente o autoritarismo e o obscurantismo governamentais. A Folha de São Paulo em editorial qualifica os filhos presidenciais de “arruaceiros” e o ministro das Relações Exteriores de membro da “franja lunática do movimento neopopulista”. O Estadão e as organizações Globo não ficam atrás.

Com isso, cai por terra mais uma vez a narrativa lulista do “golpe”, do “grande acordo” com Congresso, Supremo e tudo. Da mesma forma, não há uma “onda conservadora” se os aparatos estatais e privados burgueses estão em guerra uns contra os outros, revelando os atritos entre militares, evangélicos, “olavistas”, financistas, burocratas, etc.

Não há fechamento do regime, mas crise de hegemonia política entre os diversos setores políticos burgueses (dentre eles, o lulismo). Como é possível que tantos acreditem viver sob uma ditadura fascista, nesse quadro? Depois das grandes manifestações pela educação, da greve geral, da realização das Marchas da Maconha pelo país e de tantos outros atos de rua com pautas diversas, alguém ainda acredita que movimentos como MST e MTST serão colocados na ilegalidade, como incautos chegaram a prever apocalipticamente ao final de 2018?

Apenas dois atores políticos acreditam nestes fantasmas: o bolsonarismo — que vê seus ensaios autoritários serem barrados pelas instituições burguesas, por ora — e o lulismo das camadas médias intelectualizadas. De resto, vemos a repressão de sempre das polícias militares Brasil afora, inevitavelmente intensificada pela crise social da atual década.

O retrocesso político-ideológico da esquerda, imposto pelo lulismo, induz a equívocos em técnicas básicas de análise de conjuntura e de elaboração político-estratégica:

  1. em primeiro lugar, orientação política não é a mesma coisa que força/legitimidade social: o governo Bolsonaro é de extrema-direita, de tendências autoritárias, mas para ser de fato autoritário precisa ser um governo forte, o que não é (pode vir a ser ainda), dada sua frágil base social e sua composição tosca, repleta de incompetentes — para governar, não para fazer propaganda; a análise de conjuntura justa é aquela que não desarma os movimentos populares para a luta;
  2. segundo: fala-se muito em ampla unidade de ação contra o governo, mas oculta-se sob que estratégia política isto deve se dar; esta não pode ser a da conciliação de classes, que levou a tantas derrotas para os trabalhadores até chegarmos a Bolsonaro; devemos estar juntos — nas ruas, não na institucionalidade — com vários setores, mas na perspectiva da radicalização das lutas praticada pela militância psolista nos movimentos sociais e pelo sindicalismo classista da CSP-Conlutas; deve-se reverter a atual convergência política entre PSOL e PT, a qual expressa a adesão da esquerda ao lulismo, resultando em mais vitórias para o bolsonarismo.

Por um lado, determinados setores assalariados de maior capital cultural sofrem de depressão e, por isso, erraticamente fazem uma leitura catastrofista e moralista do Brasil, na qual Bolsonaro é a encarnação do mal e o retrocesso, generalizado. Continuam, assim, acreditando nas fake news lulistas: a imprensa “golpista” (a mesma que tem o ex-candidato presidencial Haddad como colunista), a existência da burguesia nacional (até a Taurus passa a ser exemplo de indústria nacional a ser defendida!), greve geral significa trabalhador ficar em casa (como a CUT apregoa).

Por outro, o governo de extrema-direita expressa o avanço do nosso capitalismo em crise e segue copiando certos repertórios políticos do lulismo — 13° salário do Bolsa Família, continuidade do Mais Médicos com outro nome, ampliação da Lei Rouanet para as universidades no Programa Future-se do MEC, uso da “imprensa” alternativa contra a grande mídia, etc.

Inadvertidamente, Marcelo Freixo, em seu ridículo diálogo com Janaina Paschoal, revelou que o triplo discurso do golpe, do conservadorismo e do fascismo é apenas… mais um discurso! Muita gente esbravejou, para logo a seguir “passar pano” para o deputado do PSOL, pois o eleitoralismo (o velho “cretinismo parlamentar”) não é apenas discurso, mas prática dominante no reformismo, como o PT já demonstrou muito mais intensamente.

Não foi o bolsonarismo a apassivar as classes populares e seus movimentos, mas sim o lulismo, que transferiu a aposta política nos trabalhadores para o Estado. Por isso, os setores médios progressistas insistem na confiança em políticas públicas para “mudar” o país e se recusam a voltar para as ruas. Assim, produzem eles mesmos a desesperança que lamentam e não compreendem. Ainda não aprenderam que é impossível criar um Estado de Bem-Estar Social na periferia do capitalismo onde o Brasil se situa. Já os trabalhadores vão percebendo que à bonança da conciliação de classe sobrevém a tempestade de ataques aos direitos. Cabe à esquerda produzir alternativas societárias melhores que o lulismo e o bolsonarismo oferecem, ontem e hoje.

Marco Antonio Perruso (Trog)

Marco Antonio Perruso (Trog)

Professor de Sociologia da UFRRJ; pesquisador na área de movimentos populares, esquerda e teoria marxista; militante do PSOL e do Andes-SN.

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