Teoria do valor-trabalho

“O valor como tal não tem outro material que não seja o próprio trabalho”
Karl Marx

O Capital pode ser considerado, a justo título, a obra prima de Marx. Nele, a teoria do valor-trabalho constitui a pedra de toque da crítica marxista da economia política. Numa carta a Engels, de 1858, Marx esboça um esquema do projeto de seu livro e pontifica que o valor de uma mercadoria é, em substância, a quantidade de trabalho socialmente necessária para a sua produção.

“Valor. Reduzido pura e simplesmente à quantidade de trabalho. O tempo como medida do trabalho. O valor de uso, quer seja do ponto de vista subjetivo, da usefulness [utilidade] do produto, ou do ponto de vista objetivo, da sua utility [possibilidade de utilização] — o valor de uso então aparece aqui somente como condição material pré-existente do valor, que provisoriamente se situa completamente fora da determinação da forma econômica. O valor como tal não tem outro material que não seja o próprio trabalho. Essa definição do valor, dada de início por alusão em Petty [A Treatise of Taxes and Contributions, London, 1667, p. 101] e depois claramente deduzida em Ricardo [On the Principles of Political Economy and Taxation, London, 1821, p. 420], é a forma mais abstrata da riqueza burguesa. Ela já supõe em si mesma : 1º) a abolição do comunismo natural (Índia etc.); 2º) a supressão de todos os modos de produção não evoluídos e pré-burgueses, nos quais a troca ainda não domina a produção em toda a sua amplitude. Se bem que abstração, é uma abstração histórica à qual se deve proceder precisamente sobre a base de uma evolução econômica determinada da sociedade. Todas as objeções a essa definição do valor são tomadas emprestadas a relações de produção menos desenvolvidas, ou então repousam sobre a confusão que consiste em opor a esse valor, sob essa forma abstrata e não desenvolvida, determinações econômicas mais concretas, nas quais o valor foi abstraído, e que, por outro lado, pode em seguida ser considerado como o desenvolvimento ulterior destas. Dada a obscuridade dos próprios senhores economistas sobre o ponto de saber quais são as relações dessa abstração com as formas ulteriores mais concretas da riqueza burguesa, essas objeções eram mais ou menos justificadas. Dessa contradição que opõe as características gerais do valor a sua existência material numa mercadoria determinada, etc. — essas características gerais sendo idênticas às que aparecem mais tarde no dinheiro -, resulta a categoria do dinheiro.”[1]

Sobre o dinheiro como medida de valor, disserta:

“O valor da mercadoria, traduzido em dinheiro, é o seu preço, que provisoriamente aparece sob uma forma que só se diferencia do valor dessa maneira puramente formal. De acordo com a lei geral do valor, uma quantidade determinada de dinheiro exprime uma certa quantidade de trabalho materializado. Entanto o dinheiro seja uma medida, é indiferente que seu próprio valor seja variável.”[2]

Em nova carta a Engels, de 1862, Marx critica as abordagens sobre o valor em Smith[3] e Ricardo[4].

“Ricardo confunde valores e preços de revenda. Ele crê então que, se uma renda absoluta existisse (quer dizer, uma renda independente da fertilidade diferente das categorias de solos), os produtos agrícolas seriam constantemente vendidos acima de seu valor, porque vendidos acima de seu preço de revenda (capital avançado + lucro médio). O que derrubaria a lei fundamental. Ele nega então a existência da renda absoluta e só aceita a renda diferencial.

“Mas sua assimilação do valor das mercadorias ao preço de revenda das mercadorias é totalmente falsa e retomada tradicionalmente de A. Smith.”[5]

Em outra carta a Engels, de 1867, Marx apresenta um esboço de como o valor se transforma em preço.

“Como o valor da mercadoria se transforma em seu preço de produção, no qual:

“1. O trabalho aparece como inteiramente pago sob a forma do salário;

“2. O sobre-trabalho, em contrapartida, no qual o mais-valor toma a forma de uma majoração de preços sob o nome de juros, de lucro, etc., que vem se acrescentar ao preço de revenda (= preço da fração de capital constante + salário).

“A resposta a esta questão pressupõe:

“I. Que a transformação, por exemplo, do valor da jornada da força de trabalho em salário, ou preço da jornada de trabalho, fosse exposta de início. Isso se faz no capítulo V desse volume [capítulo 17, seção 6 de O Capital].

“II. Que a transformação do mais-valor em lucro, a do lucro em lucro médio, etc. estivesse exposta. Isso pede antes a exposição do processo de circulação do capital, depois o da rotação do capital, etc., que têm aí um papel. Essa questão só pode então ser exposta no terceiro livro ( o volume II conterá os livros 2 e 3). Lá se verá de onde provém a maneira de pensar dos burgueses e dos economistas vulgares, quer dizer, que ela provém de que, em seus cérebros, é apenas a forma fenomenal imediata das relações que se reflete, e não as relações internas. Por sinal, se esse fosse o caso, de que serviria ainda uma ciência?”[6]

O Capital enseja muitas cartas de Marx para Engels. Numa delas, Marx expõe o que julga ser o melhor do livro.

“O que há de melhor no meu livro é: 1) (e é sobre isso que repousa toda a compreensão dos fatos) a colocação em destaque, desde o primeiro capítulo, do duplo caráter do trabalho, que se exprime em valor de uso ou em valor de troca; 2) A análise do mais-valor, independentemente de suas formas particulares: lucro, juros, renda fundiária, etc.”[7]

Na seguinte, Marx expõe o que ele distingue como os três elementos fundamentalmente novos de sua obra.

“1) Em oposição a toda a economia anterior que de cara trata como dados os fragmentos particulares do mais-valor com suas formas fixas de renda, lucro e juros, eu trato de início da forma geral do mais-valor, na qual tudo ainda está misturado, por assim dizer, numa solução.

“2) Uma coisa bem simples escapou a todos os economistas sem exceção, é que, se a mercadoria tem o duplo caráter de valor de uso e valor de troca, é preciso que o trabalho representado nessa mercadoria também possua esse duplo caráter; entanto que apenas a análise do trabalho sem frase, tal como se encontra em Smith, Ricardo, etc., fatalmente esbarra em toda a parte com problemas inexplicáveis. Esse é de fato todo o segredo da concepção crítica.

“3) Pela primeira vez, o salário é apresentado como a forma fenomenal irracional de uma relação que essa forma dissimula, e isso sob as duas formas do salário: salário por hora e salário por produto.”[8]

Marx acrescenta aí um comentário interessante sobre a regulação da produção pelo tempo de trabalho socialmente disponível.

“Na realidade, nenhuma forma de sociedade pode impedir que de uma maneira ou de outra o tempo de trabalho disponível da sociedade regule a produção. Mas entanto essa regulação não se cumpra por meio de um controle direto e consciente da sociedade sobre o seu tempo de trabalho — o que só é possível com a propriedade social -, mas pelo movimento dos preços das mercadorias, nós continuamos na situação que você descreveu de maneira tão pertinente nos Deustch-Französische Jahrbücher [Anais Franco-alemães].”[9]

A correspondência de Marx e Engels é rica em análises e conclusões sobre a economia política do capitalismo. Não se trata apenas de cartas de Marx para Engels, mas também de Engels para Marx e de um e do outro para terceiros. Nesses textos, a teoria do valor-trabalho ocupa uma posição central. Aqui tratamos apenas de apresentar rapidamente o tema. Aqueles que queiram se aprofundar na matéria, que é essencial para a compreensão do marxismo, devem se preparar para leituras às vezes áridas e se empenhar em estudos que demandam um esforço de maior fôlego. Entre as obras a serem estudadas, além dos três volumes de O Capital, são importantes, entre outras, Teorias do Mais-valor e Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie [Elementos fundamentais para a crítica da economia política].

Como textos auxíliares, são recomendáveis, entre outros, os dois volumes de David Harvey: Para entender o Capital Livro I e Livros II e III (Boitempo). E o já clássico estudo de Roman Rosdolsky sobre os Grundrisse: Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx (Contraponto/edUERJ).

Notas:

[1] Carta de Marx a Engels, 2 de abril de 1858 (Correspondance, p. 100–101)

[2] Carta de Marx a Engels, 2 de abril de 1858 (Correspondance, p. 101)

[3] Adam Smith (1723–1790) , economista inglês que é um dos grandes representantes da economia política burguesa clássica.

[4] David Ricardo (1772–1823), economista inglês que é um dos maiores representantes da economia política burguesa clássica.

[5] Carta de Marx a Engels, 2 de agosto de 1862 (Correspondance, p. 127)

[6] Carta de Marx a Engels, 26 de junho de 1867 (Correspondance, p. 191

[7] Carta de Marx a Engels, 24 de agosto de 1867 (Correspondance, p. 192–193)

[8] Carta de Marx a Engels, 8 de janeiro de 1868 (Correspondance, p. 198–199)

[9] Carta de Marx a Engels, 8 de janeiro de 1868 (Correspondance, p. 199)

Bibliografia:

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Correspondance (1844–1895), Moscou: Editions du Progrès, 1971.

* Citações traduzidas livremente do francês.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN, exilado político, mestre em Literatura Brasileira, é professor da rede estadual do RJ.

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