A catástrofe foi anunciada (com trombeta, já disse Lenine). Seja do ponto de vista ecológico quanto econômico, de uma maneira geral, o que se avizinha é um aprofundamento da crise global. É visível a profusão de estudos, artigos e reportagens que nos mostram o retorno de perspectivas medievais de vida em sociedade e a irreversibilidade dos prejuízos causados ao planeta.
As reflexões sobre o que fizemos de errado, mais do que nunca, são suprimidas pela esperança do retorno à dinâmica que justamente causou a desgraça atual. A ideologia reinante não é a da extrema direita. Esse delírio paranóico auto centrado é aberrante e definitivamente cresce em poder no mundo. Por mais que seja alarmante o quanto certos discursos, partindo de poderosos líderes, autorizem e incentivem as visões mais genocidas, este discurso é e sempre será uma voz presente na humanidade.
Não é possível impedir o aparecimento daquilo que tenta imputar desconexamente ao outro a causa última de toda danação que cai sobre cada um de nós. Utilizar-se da projeção agressiva para explicar o sofrimento próprio não é um desvio de caráter e sim uma etapa fundamental do entendimento sobre próprio sofrimento. Não basta informar que a ação ou a mera existência do outro não é a causa única e fundamental dos mais diversos dissabores e disfunções da vida. É necessário que haja uma espécie de teste de realidade, que esta explicação falhe radicalmente ao ponto da afirmação reflexivamente tornar-se dúvida: “será que eu não participo de alguma forma dos meus fracassos? Será que há possibilidade do sucesso pretendido sob as condições que vivo?”. A potência da dúvida depende da potência da afirmação e do fracasso dessa mesma afirmação.
Contudo, esse fracasso não precisa ser uma experiência individual que se repete infinitamente em cada membro da sociedade. É possível que se faça a transmissão desse fracasso. Só é possível compreender e elaborar sobre o fracasso chamando-o pelo nome, admitindo inteiramente quais aspectos fizeram a ideia fracassar. É nesta etapa que encontramos o principal adversário da transmissão do conhecimento que permite a superação do fracasso: a barganha. Essa estratégia tem a função de preservar o elemento tomado como fundamental na afirmação fracassada, abrindo mão dos aspectos entendidos como laterais. O resultado disso é uma prolongação do investimento naquilo que não é mais possível, aquilo que já morreu.
Os ideólogos da esquerda aferram-se à ilusão da progressão permanente do capitalismo como única possibilidade de superação da desigualdade e do genocídio contra a classe trabalhadora. Neste movimento eterno de barganha aferram-se à ideia de que vivemos em algum tipo de aldeia histórica democrática global com algumas “ilhas ou desvios de totalitarismo”. Essa é a afirmação fracassada pela qual a esquerda barganha. Ela tenta se convencer de que as instituições, os valores e as liberdades que gozam são basilares para um mundo melhor, como que sem um desenho institucional específico a justiça e a liberdade não seriam possíveis. Nesse caminho chegam a abrir mão de diversos aspectos, sempre tentando resguardar o núcleo da liberdade individual, que, na verdade, é seu fundamento inconfessável e o que a aproxima de maneira estreita da sua contraparte complementar, a direita.
A esquerda quer a paz social, o bom funcionamento das instituições e a manutenção do Estado Capitalista. E o nosso ilustre recente aniversariante, Lula, é o grande ícone da propagação dessa barganha. Mesmo tendo plena clareza de que Lula é um preso político é necessário entender que ele não pretende nem nunca pretendeu contribuir para a transformação da estrutura de poder capitalista. Lulinha paz e amor é, sobre tudo, Lulinha paz dos ricos, o emissário da barganha do capitalismo contra a vida do povo. Caso ainda houvesse espaço para acreditar que havia alguma intenção de transformação substancial, a aposta absoluta e ingênua de Lula na possibilidade dos dispositivos da ditadura da burguesia (que a esquerda chama espuriamente de “democracia de baixa intensidade”) em trazer alguma justiça para si e para a classe trabalhadora nos obriga a admitir que é passado da hora de reconhecer que a Ideia Lula fracassou.
Em 2018 o PSOL teve sua convenção eleitoral para escolher seu candidato à presidência da república. Um dos candidatos era Plínio de Arruda Sampaio Jr., que fazia justamente uma crítica à presença de Lula no lançamento da pré-candidatura de Guilherme Boulos. No meio da sua fala Plínio foi interrompido pelos filiados presentes que gritavam em uníssono “SU-PERA O LULA!”, como que dizendo que Plinio se apegava à imagem do ex-presidente de uma maneira persecutóira ou exagerada. Hoje, com a abrangência das simpatias da esquerda entorno da figura de Lula vemos que, ao menos para o campo socialista, a reverência àquela figura não se tratava apenas de uma simpatia histórica, como numa manobra para angariar e orientar ímpetos emancipatórios visando um passo além do liberalismo petista. Cada vez mais o lulismo retoma sua força dentro das organizações de esquerda e com isso o ideal de retorno àquilo que justamente causou o estado de coisas atual, num movimento de barganha rumo a salvar um caminho de emancipação e igualdade que nunca existiu ou foi possível.
Assim, o deboche dos liberais de esquerda ressoa, desta vez, na voz dos Comunistas: “Supera o Lula!”. Não é possível essa relação. A única maneira de superá-la é abandoná-la. Apesar de toda sua doçura e eloquência, Lula não se propõe, nem nunca proporá, a mudar a estrutura de poder do país. O Lula se importa, sobretudo, com a paz nacional… e a paz no Brasil já matou gente demais.