Nosso Presente Comum: Um mundo inédito, em rápida transformação e cada vez mais hostil à vida

duardo Sá Barreto*

Na última semana de novembro de 2019, a Organização Meteorológica Mundial divulgou os dados consolidados de 2018 sobre os níveis de concentração de CO2 na atmosfera (1). Segundo seu relatório sobre gases de efeito estufa (WMO Greenhouse Gas Bulletin(2)), essa concentração atingiu patamares “vistos” pela última vez há pelo menos 3 milhões de anos. Para que o leitor tenha uma referência clara da magnitude dessa escala de tempo, lembremos que estimativas correntes informam que nossos mais distantes antepassados do gênero homo remontam dessa época. O homem moderno, por sua vez, teria surgido apenas há cerca de 300 mil anos.

A estabilização dessa trajetória de transformação química da atmosfera exigiria reduções agudas e sustentadas das emissões anuais de vários gases. Outro relatório lançado nessa mesma semana pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), alerta que as emissões globais anuais de gases de efeito estufa teriam que ser reduzidas em 7,6% ao ano pelos próximos 10 anos apenas para cumprirmos as metas do Acordo de Paris (3). No entanto, sequer a desaceleração de seu crescimento tem sido alcançada.

Diante da flagrante frustração até mesmo das ambições mais modestas, não é incomum que se tribute esses resultados a algum tipo de prostração ideológica ao business as usual, de falta de vontade política ou de uma falta de capacidade de alcançar uma articulação internacional verdadeiramente eficaz. Naturalmente, é inegável que todos esses fatores entram em jogo como barreiras para o avanço da assim chamada agenda climática. Contudo, duas ponderações devem ser acrescentadas. Uma primeira, a respeito da própria agenda, e uma segunda, a respeito dos mencionados entraves.

No caso da agenda, é notório que um contingente significativo do público leigo (incluindo a própria imprensa, diga-se) passou a depositar todas as suas fixas nas metas sugeridas e pactuadas no Acordo de Paris, em 2015. Mesmo deixando de lado o fato de que todos os compromissos assumidos por cada um dos países envolvidos têm que ser ratificados pelos respectivos parlamentos nacionais, a confiança dirigida a essa mais recente articulação global padece de um problema mais profundo. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas nos adverte em seus últimos relatórios que o cumprimento integral do Acordo ainda seria muito insuficiente para limitarmos o aquecimento do planeta a 1,5oC acima da temperatura pré-industrial. O relatório mais recente do PNUMA reforça essa conclusão (5).

Quanto às barreiras, é necessário ir por partes. Primeiramente, se entendermos o business as usual como o tipo de prática que busca o máximo crescimento possível a um menor custo privado possível e com absoluta indiferença a qualquer tipo de custo social, poderíamos tranquilamente substituir esse termo pela palavra capitalismo mesmo. Não se trata de um modelo de capitalismo que está dando errado ou de um desvio do seu curso normalmente virtuoso. É simplesmente capitalismo, despido à sua mais fundamental essência. Logo, no seu desenrolar espontâneo, livre de pressões externas e regulações estatais, essa sua natureza aparece com toda a evidência.

Assim, em segundo lugar, a aparente paralisia política pode ser compreendida menos em termos morais/subjetivos e mais em termos estruturais/objetivos. Claro, costuma haver, em geral, espaço para o exercício de pressões externas e regulações estatais. Em outras palavras, é possível obter algum avanço no sentido de obrigar as grandes corporações a incorporarem como custo privado parte dos custos sociais de sua operação. Isso, argumenta-se, poderia limitar práticas destrutivas, bloquear atividades antiecológicas e até mesmo forçar transições para práticas e atividades mais ecologicamente sustentáveis. Esse espaço para as pequenas vitórias, contudo, não é ilimitado. Na verdade, ele é bastante estreito, posto que nenhuma medida que ameace os fundamentos da lucratividade e da competitividade é jamais tolerada. Não se trata, portanto, de mera falta de vontade política para fazer o que é necessário. O ponto é que a vontade política se encontra limitada a priori por requisitos dos quais o capital e seus representantes não podem abrir mão.

Em terceiro lugar, ilustrando esse ponto, peço que o leitor perceba que as últimas décadas foram marcadas por uma pletora nunca antes vista de políticas climáticas. Mesmo que nos grandes ambientes de articulação internacional o resultado mais aparente seja de uma certa paralisia, resultados muito expressivos foram obtidos. A título de exemplo, o consumo primário de energia de fontes ditas renováveis cresceu 383% desde 1949. Desde 1973, o crescimento do uso dessas fontes foi de 258,6%. Tomando 1992 como base, encontramos uma expansão de 196%. Ou seja, para os dados disponíveis (6), a maior parte do crescimento se concentra nos últimos 46 anos, inicialmente motivado pelo primeiro choque do petróleo. Nesses 46 anos, ademais, a maior parte do avanço se concentra nos últimos 27 anos, fortemente motivado pela Primeira Cúpula da Terra (Eco-92, no Rio de Janeiro) e por todas as convenções climáticas e ambientais subsequentes. Este é apenas um de vários resultados importantes obtidos por políticas implementadas em todo o mundo.

Esbarramos em um aparente paradoxo. Se é possível afirmar que houveram resultados substantivos, como explicar a deterioração generalizada (e mais acelerada que o previsto) das principais variáveis climáticas e a persistente incapacidade de atingir as metas mais fundamentais? A explicação, curiosamente, é simples.

O resultado almejado por toda regulação estatal sobre certas atividades — e por toda taxação imposta sobre variados poluentes e todo incentivo para o uso de formas alternativas de energia etc. — é a moderação do nosso impacto material sobre o planeta. Quando essas políticas obrigam os agentes econômicos a assumir como custo privado os impactos ecológicos de suas práticas, espera-se que essas práticas sejam reduzidas ou eliminadas, especialmente pela contração do consumo de recursos e da geração de resíduos poluentes. O problema, no entanto, é que embora as condições para essa moderação do nosso impacto sejam a todo instante criadas, elas são também a todo instante bloqueadas/neutralizadas.

De imediato, retomemos o exemplo das fontes energéticas. Ao mesmo tempo que o consumo primário das fontes renováveis aumenta significativamente e atinge patamares expressivos, o consumo primário das fontes fósseis cresce quase tão rápido quanto. Esse crescimento não é apenas fruto de um desinteresse ambiental da sociedade ou de pressões exercidas por lobbies do setor do petróleo. Ele ocorre por necessidade, originada pela sede energética de uma economia em permanente estado de impulso materialmente expansivo. Com isso, a participação das fontes renováveis na matriz energética mundial, que em 1949 era de 9,3%, avança para apenas 11,27% em 2018. Assim, por um lado, eventuais ganhos pontuais são simplesmente atropelados pela avalanche material do movimento expansivo (6) da sociedade capitalista.

Por outro lado, podemos apontar um mecanismo ainda mais profundo e estrutural. Basta lembrar que tudo aquilo que tem seu consumo evitado (e que, portanto, também não pode virar resíduo) não é apenas recurso físico ou energético. É também capital, que, uma vez liberado daquela atividade a qual foram impostas restrições, não pode acomodar-se na imobilidade. Esse capital liberado precisa agora encontrar outros espaços de atuação para executar sua lógica de valorização e, quando os encontra, estabelece necessariamente contato com a materialidade. Em suma, o potencial poupador das pressões populares, da regulação estatal, dos avanços tecnológicos é sistematicamente neutralizado pela vocação expansiva do capital.

Voltando agora ao início do texto, lembremos que o estado atual da química atmosférica é inédito para nossa espécie e até mesmo para nossos antepassados mais longínquos. Da última vez que essas mesmas condições estiveram presentes, estima-se que a temperatura média do planeta era 2 a 3oC maior do que hoje e que o nível do mar era 10 a 20 metros maior do que hoje. Não é nada extravagante concluir que já vivemos em um mundo desconhecido para a espécie humana. Ademais, esse mundo se encontra em abrupto processo de transformação. Muitas dessas transformações podem inclusive, num futuro terrivelmente próximo, desafiar a capacidade do planeta de sustentar vida. Dessa forma, se até mesmo diante desse precipício o capitalismo se mostra estruturalmente incapaz de interromper sua marcha ecocida, não existe possibilidade de preservação da espécie que não passe pela integral, urgente e definitiva superação da sociabilidade do capital.

*Professor da UFF, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro “O capital na estufa”.

(1) Cf. o press release em: https://public.wmo.int/en/media/press-release/greenhouse-gas-concentrations-atmosphere-reach-yet-another-high.

(2) Disponível em: https://library.wmo.int/index.phplvl=notice_display&id=21620#.Xd197ldKjIU.

(3) Cf. em: https://nacoesunidas.org/corte-de-emissoes-precisa-ser-mais-drastico-para-limitar-aumento-de-temperatura-global-a-15oc/.

(4) Idem.

(5) Cf. https://www.eia.gov/.

(6) A expansão material é persistentemente crescente, mesmo quando a trajetória do PIB (ou do PNB) apresenta comportamentos mais tímidos.

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