O avanço avassalador da pandemia de coronavírus e o aprofundamento galopante da crise econômica configuram um momento histórico extraordinário. O Brasil não é maior do que as crises e não terá a mínima possibilidade de evitar seus efeitos devastadores. Muito pelo contrário. Todas as vulnerabilidades econômicas, sociais, sanitárias, políticas e culturais de uma formação social que, ao longo de seus quinhentos anos, não resolveu nenhum de seus problemas fundamentais virão à tona com intensidade máxima.
Os cenários desenhados pelo Imperial College of London são assustadores. Na hipótese de nada ser feito para mitigar a epidemia, prevê-se a morte de cerca de 40 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, o número de óbitos chegaria a 1,2 milhão. No cenário de supressão precoce do processo de difusão do coronavírus, estima-se que as mortes ficariam em torno de 44 mil. O atraso na adoção das medidas de supressão, o que já está acontecendo no país, elevaria a quantidade de falecidos à casa de 206 mil. Considerando que as estimativas são feitas tendo como base os países centrais, ou seja, desconsiderando as especificidades que caracterizam a sociedade brasileira — desigualdade extrema, urbanização caótica e precariedade da estrutura de saúde pública–, o mais provável é que tais cenários estejam subestimando a letalidade dantesca da crise em marcha.
Nos centros pensantes do grande capital, que tendem sistematicamente a subestimar a gravidade das recessões, consolida-se o consenso de que a economia mundial marcha para uma depressão monumental. O órgão de pesquisa dos bancos internacionais — Institute of Internacional Finance (IIF) — prevê quedas na economia norte-americana e europeia da ordem de 10% e 18%, respectivamente, no primeiro semestre de 2020. Contração que equivale à registrada na crise de 1929. Mesmo supondo uma vigorosa recuperação a partir do terceiro trimestre — o que é bastante improvável a julgar pelas expectativas da UNCTAD sobre o comportamento dos investimentos-, o IIF estima que o crescimento anual da economia mundial será próximo de zero. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta que 25 milhões de trabalhadores podem perder o emprego, mais do que na crise de 2008–2009.
O impacto da crise capitalista sobre a América Latina será imediato e agudo. O centro de pesquisa da Goldman Sachs, uma espécie de quartel general do capital especulativo internacional, prevê que o encolhimento da economia latino-americana em 2020 será superior ao ocorrida em 2009, chegando a — 3,8% (há apenas uma semana a previsão era de uma diminuição de — 1,2%). O Banco J.P. Morgan revisou sua estimativa de queda anual da economia brasileira para -3,3%, em patamares equivalentes ao ocorrido em 2015 e 2016, prevendo uma queda de -6% no primeiro trimestre e de -20% no segundo trimestre.
No Brasil, a dupla crise que abala a vida nacional é agravada pela crise política que paralisa o Estado em todas as suas dimensões. Questionado pela escalada da insatisfação popular e pela crescente dificuldade de manter o apoio da grande burguesia, o governo Bolsonaro parece muito mais preocupado em cuidar de sua própria sobrevivência política do que em enfrentar os complexos problemas que ameaçam a vida dos brasileiros. A briga pública do presidente com o governador de São Paulo, João Dória, e a declaração do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, até há pouco homem de confiança do Planalto, de que não respeitará as decisões do presidente dão a dimensão do caos que reina no aparelho de Estado. À crise econômica, política e de saúde, soma-se agora uma crise federativa aguda que abala ainda mais a já combalida capacidade de ação dos estados e municípios.
A política do Planalto de sabotar a precária estratégia de supressão da epidemia esboçada na última hora por governos estaduais e municipais desesperados, estratégia que chegou à irresponsabilidade de divulgar uma propaganda institucional genocida — “o Brasil não pode parar” –, parece indicar que, infelizmente, o desdobramento da crise da saúde caminha para um desfecho trágico. A dificuldade do governo Bolsonaro de perceber a gravidade da situação econômica, a morosidade em libertar a política econômica das amarras do regime de austeridade fiscal e, mais do que tudo, seu viés radicalmente antissocial deixam os trabalhadores completamente indefesos diante do avanço do desemprego em massa e da escalada da pobreza.
Sem capacidade de avaliação, planejamento, coordenação, operacionalização e, sobretudo, sem vontade política para proteger a população de crises que despontavam como inevitáveis desde o início do ano, quando a China anunciou que não conseguiria evitar a difusão da epidemia pelo globo, o Estado brasileiro deixou o cidadão ao deus-dará. Os trabalhadores devem cobrar do Estado políticas públicas de defesa da vida e do emprego, mas não devem se iludir com a possibilidade de que suas cobranças sejam ouvidas. O pouco que existia de caráter público do Estado brasileiro ruiu definitivamente.
Os trabalhadores devem se recusar à imolação passiva em defesa dos interesses mesquinhos do capital. Em tempos extraordinários, ações extraordinárias. Acima da lei está a obrigação suprema de defender a vida. Na ausência de Estado, os brasileiros só podem contar com eles próprios. Na emergência do caos, somente a auto-organização da classe trabalhadora será capaz de evitar que a tragédia humanitária à vista seja ainda maior. É obrigação de todos proteger a si e aos outros do coronavírus e seguir rigorosamente as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Paralisação imediata de todas as atividades não essenciais; Garantia de emprego e renda para todos os trabalhadores; Suspensão sumária do pagamento da dívida pública; Prioridade absoluta ao combate ao coronavírus; e Greve Geral para derrubar Bolsonaro, Guedes e Mourão são medidas urgentes para evitar a catástrofe que se aproxima.
Contrapoder, 30 de março de 2020.