Passados mais de cinco anos de intensa atividade, consolida-se o consenso nas altas esferas das classes dominantes de que a operação Lava Jato deve ser esvaziada e devidamente submetida ao império da lei. Uma vez consumada a liquidação da Nova República, o que foi alcançado pela desmoralização do sistema político e a completa desfiguração dos capítulos sociais da Constituição de 1988, a Lava Jato perde sua razão de ser.
A autonomia dos procuradores e juízes para investigar desafetos e conseguir vantagens pessoais tornou-se disfuncional para os donos do poder. De um lado, a instabilidade política e a insegurança jurídica converteram-se num estorvo aos negócios. De outro, a continuidade da cruzada moralista revelou-se um risco perigoso para os arrivistas reacionários que chegaram ao Planalto.
Nas últimas semanas, uma enxurrada de fatos revela que se está forjando um consenso em torno da urgência de “estancar a sangria” e, como recomendava Jucá, construir “um grande acordo nacional“, “com o Supremo, com tudo”. A República de Curitiba deve ser freada para evitar que as investigações das relações promíscuas entre o público e o privado venham a comprometer um dos pilares fundamentais do padrão de dominação burguesa no Brasil: a corrupção sistêmica como meio de controle do capital sobre o Estado.
Os golpes contra a Lava Jato foram diretos, contundentes e explícitos. Destacam-se, entre eles, os mais importantes: a retirada do COAF da jurisdição de Moro e a subordinação de suas investigações à ordem judicial; a ampla divulgação pela grande mídia das conversas nada republicanas de Moro, Dallagnol e companhia, conspirando em conluio para perseguir desafetos e obter vantagens pessoais; a nomeação da chefia do Ministério Público Federal, escolhido fora da lista tríplice e, diga-se de passagem, com o entusiástico apoio da bancada petista no Senado; a aprovação da Lei de Abuso de Autoridade pelo Congresso Nacional; a suspensão pelo STF das investigações sobre as falcatruas de Queiroz que incriminam Flávio Bolsonaro; e a anulação pelo STF, por ampla maioria, de condenações da Lava Jato que violem o pleno direito à defesa.
O Brasil não é para iniciantes. O acordão nacional para conter a Lava Jato conta com o beneplácito de Bolsonaro, que, do Planalto, busca desesperadamente bloquear as investigações de corrupção que ameaçam seu entorno. Afinal, os recém-chegados ao Planalto precisam de um mínimo de “segurança jurídica” para, como é de praxe, dividir a parcela do butim que lhes cabe pela administração do Estado. A conciliação nacional conta também com a benção de Lula, que, da cadeia, comanda uma oposição cordata, que se recusa a mobilizar os trabalhadores para enfrentar a ofensiva aos seus direitos. Premidas por uma caça às bruxas que ameaça a todos, a “Velha Política” e a “Nova Política” deixaram de lado suas idiossincrasias ideológicas e, na secular tradição de conciliação das elites brasileiras, deram-se as mãos para colocar um ponto final no “Fora todos reacionário” liderado pelos procuradores. O novo chefe do Ministério Público Federal, Augusto Aras, é o fiador do acerto.
O acordo tácito de Bolsonaro com Lula não deve causar surpresa. A genuína simpatia do ex-capitão pelo fascismo e sua personalidade autoritária não determinam o caráter de seu governo. Para além do sugerido por sua caricatura grotesca de “fuhrer”, o ex-capitão não passa de um oportunista. Em sua longa trajetória no baixo clero do parlamento, o clã Bolsonaro desfrutou de todas as malandragens do fisiologismo: nepotismo, empreguismo, rachadinhas, caixa dois, pixuleco, carteirada, mordomias, curral eleitoral. Sem a mínima condição objetiva e subjetiva de instalar um Estado totalitário à altura de seus delírios tirânicos, para além de seus patéticos arroubos verbais, o ex-capitão é um pragmático. Sabe que, no que é fundamental para os interesses do capital e da elite política, terá de se enquadrar nos limites da Lei ou, mais dia menos dia, será deposto.
Para quem não se ilude mais com o papel do PT na política nacional, a dobradinha de Lula com Bolsonaro tampouco deve causar estranheza. O PT nunca foi um empecilho à ofensiva liberal. Dilma não foi deposta por se recusar a avançar sobre os direitos dos trabalhadores. Antes de cair, fez o que pode para contemplar as exigências do capital. Ela foi deposta porque, com a exaustão das condições objetivas que viabilizavam a política de conciliação de classes, somente com o PT e a CUT na oposição, cumprindo a tarefa estratégica de apaziguamento e desmobilização dos trabalhadores, seria possível evitar, como de fato se tem evitado, que os ataques contra os trabalhadores se transformassem numa rebelião dos de baixo. É o mesmo motivo pelo qual Lula não pôde participar das eleições. No poder central, ele perderia o condão de conter as massas e não serviria mais à burguesia. Em poucas palavras, o pânico de uma nova Jornada de Junho de 2013, o espectro que atormenta a classe dominante, condenou o PT a ter de deixar o governo e a exercer seu papel de esquerda da ordem como oposição responsável, subordinada aos imperativos do ajuste neoliberal e às agruras do novo momento da política nacional.
A gambiarra política que substitui a falida Nova República dá lugar a um regime político híbrido — nem ditadura militar, nem pleno estado de direito. A “democracia restrita”, cristalizada na ditadura militar como padrão de dominação burguesa que funciona como uma contrarrevolução permanente, institucionalizada em 1988, com a transição para o Estado de direito, assume nova cara. Destituída completamente de qualquer conteúdo “cidadão”, a Constituição de 1988 transforma-se num simulacro de democracia. Com a cumplicidade do PT e de seus partidos-satélite, esboça-se um bipartidarismo para inglês ver, que lembra a farsa democrática da época dos generais da ativa, em que a disputa política se dava entre o partido do sim — o MDB — e o partido do sim senhor — a Arena.
O custo de não ter passado a limpo os crimes da ditadura militar e não ter modificado as bases sociais do Estado autocrático instalado em 1964 cobra seu preço. O entulho autoritário incrustado na Constituição de 1988 veio à tona. Os parcos controles sobre as ações predatórias do capital foram desarticulados. O resíduo de nacionalismo que restava foi jogado às favas. Sob a tutela velada dos generais, mediada pelas decisões do STF, as “liberdades democráticas” tornam-se totalmente inócuas como instrumento de expressão da vontade popular. O grau de liberdade do parlamento brasileiro fica irremediavelmente reduzido à calibragem da dose do neoliberalismo selvagem.
Enquanto recrudesce a guerra aos pobres e a repressão aos trabalhadores, a casta política estabelece um pacto surdo de sobrevivência para recompor suas garantias de que os donos do poder não serão atropelados por abusos de autoridade de juízes e promotores. O “Estado de direito” passa a valer só para os “homens direitos”. As forças políticas que se enquadrarem nas novas regras do jogo e não questionarem a solução liberal-autoritária para a crise econômica e política terão acesso às benesses do jogo eleitoral. O medo do povo, o cinismo e a hipocrisia venceram definitivamente a esperança de que seria possível civilizar a sociedade brasileira.
O balanço objetivo da operação da Lava Jato é desastroso. A centralização das investigações nos efeitos da corrupção sistêmica (a apropriação indébita de recursos públicos pelos partidos políticos e seus agentes), e não nas suas causas (a compra de políticos por empresas privadas com interesses espúrios), deixou intactas as engrenagens da roubalheira. Limitando-se à troca dos agentes corrompidos, a cruzada moralista funcionou como um mero instrumento da luta política entre as diferentes facções que disputam o controle dos cofres públicos.
A exposição espetacularizada dos mecanismos de financiamento das eleições trucidou a credibilidade do sistema político. Abrindo uma crise de representatividade incontornável, a desmoralização da política selou a continuidade da Nova República. A julgar pelo novo perfil do Congresso Nacional, o efeito concreto da cruzada moralista sobre a ética na política é no mínimo duvidoso. No final, assim como ocorreu na operação Mãos Limpas na Itália, o controle do capital sobre o Estado foi potencializado, fato que explica a facilidade com que o Congresso Nacional acolheu a agenda antissocial e antinacional do ajuste liberal.
Por fim, a explicitação do modus operandi corrupto da Lava Jato pelo Intercept confirmou o que todos suspeitavam. A Justiça brasileira é seletiva, arbitrária, corrupta e classista. O Ministério Público funciona como uma casta de justiceiros que se julga acima da lei. Magistrados inescrupulosos atuam como um “juiz ladrão”. Procuradores politiqueiros aproveitam sua posição no Estado para estigmatizar adversários e arrecadar dinheiro. Policiais federais e auditores fiscais abusam de seu poder para chantagear os investigados. Ministros do Supremo abençoam a bagunça, mais preocupados em acomodar a opinião pública e as pressões políticas e militares do que com a defesa dos preceitos constitucionais. Ao violar o devido processo legal, o fundamento básico de qualquer sociedade civilizada, a Lava Jato levou a desmoralização do Legislativo e do Executivo ao Judiciário e ao Ministério Público, provocando uma crise institucional generalizada, cujos desdobramentos são imprevisíveis.
A subordinação tardia das investigações da Lava Jato ao império da Lei não resgata a moralidade do Ministério Público Federal e do poder judiciário. O abuso de autoridade é uma característica do patrimonialismo das classes dominantes. As autoridades no Brasil operam segundo a norma “para os amigos tudo, para os inimigos, a Lei”. A anulação de condenações que não respeitaram o devido processo legal, enquanto quase 340 mil brasileiros seguirem encarcerados mesmo sem condenação alguma, não restaurará a credibilidade da Justiça. A eventual liberdade de Lula não normalizará a vida política nacional, conspurcada por uma sequência de ilegalidades que começaram com a deposição de Dilma e culminaram com o pleito ilegítimo que levou o ex-capitão miliciano à presidência da República. O “acordão nacional” não restaurará a estabilidade política de uma institucionalidade em frangalhos fundada sobre os escombros dos direitos dos trabalhadores. Sua durabilidade será definida pela luta de classes.
A sociedade brasileira encontra-se no pântano. Para os socialistas, a tarefa do próximo período é construir instrumentos políticos que permitam que a luta dos trabalhadores contra a barbárie e por igualdade substantiva se transforme em força material capaz de derrotar a contrarrevolução permanente que, em nome dos negócios, submete os trabalhadores à violência sem fim do neoliberalismo selvagem.
Contrapoder, 07 de outubro de 2019