A manifestação convocada por Bolsonaro contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, como forma de resolver a querela em torno do controle do orçamento da União, é clara e inequivocamente ilegal. Não é a primeira vez que o ex-capitão comete crime de responsabilidade e explicita sua intenção de governar acima de qualquer constrangimento institucional. Desde sua expulsão do exército por arquitetar atos terroristas como meio de pressão por aumento salarial, até sua eleição fraudulenta para a Presidência de República, passando por sua sombria vida parlamentar como porta-voz dos porões da ditadura e da banda suja da polícia militar, Bolsonaro nunca escondeu seu projeto totalitário.
Desgastado pela absoluta incapacidade de seu governo de resolver minimamente os problemas reais da população, acuado pelas ameaças de escândalos decorrentes de sua relação orgânica com as milícias do Rio de Janeiro e sem uma sólida política de apoio, Bolsonaro não tem, no momento, a menor condição de liderar um golpe de Estado. Nem por isso sua continuidade na Presidência da República deixa de ser um elemento extraordinariamente nefasto e perigoso.
O ex-capitão é um entulho autoritário que, alimentando-se das frustrações e ressentimentos derivados da putrefação da Nova República, acabou ganhando proeminência nacional. Seu patrimônio político é construído pela capitalização de sua relação abusiva com as instituições democráticas. Se não for detido e subordinado à Lei, o desrespeito às regras do jogo ganhará terreno e o que hoje é praticamente impossível, amanhã pode se tornar uma realidade. É o que se viu nas eleições de 2018.
Ao insistir no golpe de Estado como solução para a crise nacional, Bolsonaro colocou na ordem do dia a urgência de sua deposição do poder. Quem elude à questão dança na beira do abismo. Na ausência de reação imediata e implacável, a conspiração totalitária avança. O que deve unificar o campo realmente comprometido com a defesa do estado de direito é, portanto, a definição de como se livrar do presidente miliciano e de sua camarilha.
Na superestrutura política, o debate polariza-se entre os que advogam pelo início de uma campanha de “impeachment” — posição esboçada timidamente pelo líder da oposição na Câmara de Deputados, Alessandro Molon — e os que avaliam que não há correlação de força para derrubar Bolsonaro e, portanto, que o melhor a fazer é sangrá-lo até o fim de seu mandato à espera das eleições 2022 — estratégia defendida com insistência por Lula. A primeira é mais consequente com a temeridade que significam mais três anos de seu governo para a sociedade brasileira. Afinal, como mostra a própria trajetória do ex-capitão, se houver construção política, o que hoje não é possível, amanhã pode se tornar realidade.
Para além das diferenças táticas em relação ao momento e à forma de enfrentar Bolsonaro, a oposição dentro da ordem parte da avaliação de que a deposição do presidente miliciano pode (e deve) ser conduzida como um processo estritamente político-institucional, desvinculada da questão econômica, e restrita aos marcos da Constituição de 1988. Trata-se de uma avaliação equivocada com consequências práticas desastrosas.
Bolsonaro despontou no cenário nacional como uma resposta reacionária à crise terminal da Nova República. Sem enfrentar a causa do problema — a persistência do entulho autoritário -, não há como eliminar seu efeito — a decepção com a democracia de baixa intensidade que substituiu o regime militar. Em outras palavras, na ausência de uma solução que supere, de baixo para cima, o antagonismo entre as promessas da Constituição Cidadã e a dura realidade do capitalismo selvagem, não há como evadir a solução autoritária para a crise política nacional (com Bolsonaro, Mourão ou qualquer outro aventureiro — Dória, Witzel, Huck, Moro etc). Imaginar o contrário equivale a acreditar que seria possível curar a raiva mordendo a calda do cachorro louco.
Bolsonaro sobrevive porque os donos do poder lhe concedem carta-branca para atuar acima da lei. Como já foi dito e redito por empresários que se julgam civilizados e cultivados, seu primitivismo tosco não incomoda o capital. Seu valor é exatamente estar destituído de qualquer princípio ético e moral. Como bom miliciano, Bolsonaro é pau pra toda obra.
Enquanto a burguesia não encontrar uma alternativa mais palatável para conduzir a solução liberal-autoritária para a crise nacional, que implica a liquidação de todas as conquistas civilizatórias do povo brasileiro, a continuidade do capitão do mato no comando do Estado não será minimamente abalada pela profusão de notas de protesto, editoriais indignados, discursos inflamados e atos de salão.
O destino político do governo Bolsonaro será decidido nas ruas pela luta de classes. Não é possível combatê-lo sem colocar em questão o projeto a que ele serve: o padrão de acumulação liberal-periférico e o padrão de dominação autoritário — dois irmãos siameses. Considerando-se o aval inequívoco dos donos do poder, o ex-capitão e os brucutus que o cercam só serão detidos quando a classe trabalhadora entrar em cena. E ela não entrará em cena com a força e o vigor necessários enquanto não se unificar em torno de um programa político diametralmente oposto ao da burguesia.
O único caminho capaz de interromper a marcha insensata dos acontecimentos é transformar os ressentimentos e frustrações dos trabalhadores com as promessas vazias da Nova República em vontade política em prol de uma solução democrática, nacional e anticapitalista para a crise civilizatória que abala a vida nacional. Em outras palavras, não haverá solução civilizada para o impasse histórico que envenena a vida nacional sem mudanças estruturais de largo alcance que radicalizem a democracia em todas as suas dimensões, tendo como parâmetro a busca da igualdade substantiva. É o que ensina a rebelião popular que coloca em questão o modelo econômico e político neoliberal instalado no Chile há quase meio século.
Trata-se de uma tarefa árdua. O desafio imediato é mobilizar os trabalhadores em torno de interesses imediatos concretos e contra qualquer aventura autoritária. No 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, todas às ruas contra o machismo estrutural e seu símbolo máximo. “Ele não!”. No dia 14 de março, dois anos do assassinato de Marielle Franco, todos às praças para exigir a punição dos culpados e honrar a memória dos que tombaram em combate. Marielle vive! No dia da Greve Nacional em Defesa da Educação e do Serviço Público, 18 de março, estudantes e trabalhadores cruzarão os braços e tomarão as ruas contra o desmanche das políticas públicas. Só o povo na rua impede a ditadura!
Contrapoder, 02 de março de 2020