A destruição provocada por chuvas torrenciais tornou-se uma rotina das grandes cidades brasileiras. A violência das tempestades e seus efeitos devastadores têm se intensificado. A barbárie ambiental instalou-se como um dado inescapável da realidade. Com raras exceções, as vítimas são sempre trabalhadores pobres que vivem em condições de extraordinária precariedade em encostas e baixadas sujeitas a inundações (1).
A catástrofe que assolou Belo Horizonte na última semana de janeiro escancarou — mais uma vez — a total vulnerabilidade das cidades brasileiras a eventos climáticos extremos. As imagens de carros arrastados pelas águas e de jatos d’água brotando furiosamente do asfalto como um chafariz dantesco são metáforas pavorosas da absoluta irracionalidade do padrão de urbanização de nossas grandes metrópoles. Os dois principais protagonistas da fúria das águas — o Córrego do Leitão e o Ribeirão do Arrudas — tinham sido canalizados em projetos modernizadores. O mais ambicioso deles — o Nova BH 66 — foi concebido na época da ditadura militar, com o objetivo explícito de adequar a cidade às exigências do automóvel.
Para tratar a situação de caos urbano provocado pela barbárie ambiental, o establishment recorre ao “kit catástrofe natural”. Com semblante sério, feição compungida e tom sombrio, locutores de televisão anunciam a desgraça e, sob o pano de fundo de imagens chocantes, convocam vítimas, testemunhas oculares, autoridades acadêmicas e lideranças políticas para explicar o ocorrido e dizer o que precisa ser feito para enfrentar o problema.
Os personagens mudam, mas a mensagem é basicamente a mesma. A fúria da natureza é um fato consumado com o qual a sociedade terá de aprender a conviver. Seus impactos negativos seriam potencializados pela ignorância, irresponsabilidade e incúria das próprias vítimas e das autoridades de plantão, que não teriam tomado as providências necessárias para prevenir ou remediar o problema. Diante do acaso da vida, os indivíduos devem ter fé em Deus e confiança na solidariedade das “pessoas de bem”, na ação das instituições filantrópicas e nos recursos emergenciais dos governantes.
A esperança de dias melhores fica por conta de soluções técnicas e institucionais que, sem enfrentar as causas estruturais do problema, procuram apenas mitigar seus efeitos. Com uma ou outra variação, anunciam-se medidas — as mesmas de anos anteriores que não saíram do papel: planejamento urbano, retirada da população das áreas vulneráveis, construção de piscinões, abertura de parques, limpeza de bueiro, alarme prévio nas áreas de risco, etc. Por fim, reafirma-se a confiança na capacidade dos indivíduos de recomeçar a vida e dos governantes de reconstruir a cidade. Os “fortes” sobreviverão e os políticos “bem-intencionados e competentes” acudirão os desesperados. O objetivo é evidente: naturalizar a situação e inculcar o conformismo na população.
O discurso oficial ignora olimpicamente os condicionantes estruturais, historicamente determinados, da barbárie ambiental. Não se questiona a relação entre padrão de desenvolvimento capitalista, crise ambiental, aquecimento global, destruição das florestas e chuvas extremas. Não se contesta a relação umbilical entre especulação imobiliária, primazia absoluta do transporte individual, impermeabilização dos solos, canalização dos rios e maior vulnerabilidade das cidades aos efeitos destrutivos de chuvas extremas. Não se critica o nexo entre crescimento econômico baseado na cópia do estilo de vida americano, concentração de renda, segregação do espaço urbano, ausência de política habitacional, loteamento clandestino e concentração de um grande contingente populacional em áreas de risco.
A vida nas grandes metrópoles brasileiras é um verdadeiro inferno. As enchentes e os deslizamentos de terra são apenas uma dimensão da barbárie urbana. Sem transformações estruturais muito profundas não há como deter a falência das cidades. O caos urbano ancora-se na complexa rede de interesses mercantis que explora sem nenhuma piedade a vida dos trabalhadores.
Em 2020 haverá eleição municipal. Os candidatos que não questionarem as estruturas responsáveis pelas mazelas da cidade, ludibriando os eleitores com programinhas institucionais e receitas de bolos, são meros gestores da barbárie urbana. Ao invés de serem usadas para pleitear o poder com promessas que jamais poderão ser cumpridas, as eleições devem servir para colocar na agenda nacional a necessidade de enfrentar a relação inextrincável entre aquecimento global, urbanização caótica e desigualdades sociais — o tripé responsável pelo inferno urbano.
Não se faz omelete sem quebrar ovos. Enquanto a cidade estiver sob o comando de uma burguesia mercantil truculenta, mancomunada com o grande capital internacional e nacional, não haverá esperança de vida melhor. Apenas este debate pode abrir perspectivas para uma intervenção popular que possibilite uma cidade comandada pelos interesses dos trabalhadores. A vingança da natureza contra o progresso capitalista só cessará quando a revolução socialista fizer o ajuste de contas dos trabalhadores com a burguesia. As eleições devem ser aproveitadas para levantar a bandeira da reforma urbana, uma das dimensões da revolução brasileira.
1 — De acordo com o IBGE, em 2010, 8,2 milhões de pessoas vivem em áreas de risco — 5% da população urbana do país. Nas grandes metrópoles, o percentual é substancialmente maior.
Contrapoder, 03 de fevereiro de 2020