Uma geração é definível mais pelos problemas que encontra do que por uma maneira comum de resolver seus problemas
João Cabral de Melo Neto
Os poemas precedem os fuzis.
Glauber Rocha
POESIAS
Madrugada
Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite
a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes
Ferreira Gullar, in ‘Antologia Poética’
IDÍLICA ESTUDANTIL
Nossa geração teve pouco tempo
começou pelo fim
mas foi bela a nossa procura
ah! moça, como foi bela a nossa procura
mesmo com tanta ilusão perdida
quebrada,
mesmo com tanto caco de sonho
onde até hoje
a gente se corta.
Alex Polari
FILMES
IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA
Iracema, uma Transa Amazônica, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, parte da subversão da figura de Iracema de José de Alencar, “a virgem dos lábios de mel”. A protagonista na adaptação é resultante da situação politica e econômica, impulsionada pela ditadura civil-militar, na região da floresta amazônica. No filme, que combina a ficção a aspectos documentais, Iracema se prostitui na beira da inacabada rodovia Transamazônica, um cenário absolutamente degradado.
MANHÃ CINZENTA
O curta metragem Manhã Cinzenta, de 1969 foi dirigido por Olney São Paulo — cineasta baiano adepto do Cinema Novo, importante movimento cinematográfico no Brasil e no Mundo. O emblemático filme da resistência e critica à ditadura militar retrata, em um país imaginário na América Latina, um casal de estudantes que é preso em um comício e investigado por um robô e um cérebro eletrônico. Segundo o diretor a intenção era criar “um canto desesperado ao amor e à liberdade”. O curta foi exibido no avião que rumou a Cuba, sequestrado em uma ação guerrilheira da organização MR-8. Os militares, ao encontrarem uma cópia do filme com um dos participantes, associaram o cineasta à guerrilha. Ele, então, foi preso, torturado e nunca se recuperou plenamente, falecendo em 1978. O curta de uma potência estética única denuncia o trágico fim do próprio artista.
CABRA MARCADO PARA MORRER
Cabra marcado para morrer, documentário de Eduardo Coutinho é considerado uma das maiores obras do cinema brasileiro. O filme começa a ser filmado em 1964, como uma ficção que contaria a história de João Pedro Teixeira, importante líder das Ligas Camponesas da Paraíba. No entanto, com o Golpe Militar em 1o de abril, a equipe do filme e as famílias do engenho Galileia são surpreendidos por uma forte repressão. Parte do material de filmagem consegue ser salvo, mas a produção não consegue continuar. Em 1981, Eduardo Coutinho retoma a produção do filme, incorporando o hiato e transformando completamente o projeto. Agora como um documentário, o filme retorna ao Engenho, reencontra os camponeses que trabalharam para o filme em 64 e transforma a própria equipe em personagem central. A figura central do filme torna-se Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, que havia acabado de sair de 20 anos na clandestinidade.
A HORA DA ESTRELA
Disponível no SPCine Play, que liberou todo o conteúdo gratuito durante 30 dias
O filme conta a trajetória de Macabéa, jovem migrante nordestina, órfã de pai e mãe, que começa a trabalhar como datilógrafa em São Paulo. A adaptação cinematográfica do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, foi dirigida por Suzana Amaral e estreia em 1985. Datada do período de redemocratização da Ditadura Militar, a releitura, uma década posterior à publicação do texto, trabalha a situação de uma jovem migrante nordestina em São Paulo, traz à tona as várias bandeiras do movimento feminista da década de 1980 e retrata as transformações sociais vividas no último período da história brasileira ao expor as constantes contradições entre o moderno e o arcaico.
VALA COMUM
Vala Comum é um documentário dirigido por João Godoy, sobre a vala comum no cemitério Dom Bosco, em Perus, na periferia de São Paulo, que foi descoberta em 1990. O cemitério, que foi criado na época de intensificação do aparato repressivo em plena ditadura militar, recebia indigentes e perseguidos políticos. Além de acompanhar o processo investigativo, através de depoimentos de familiares dos desaparecidos políticos, o filme trata sobre a repressão da época passada a partir da continuidade dos trágicos rastros e traumas.
MÚSICA E TEATRO
Show Opinião
O Show Opinião, estreou em dezembro de 1964, com Nara Leão, João do Valle e Zé Ketti. Concebido pelo CPC (Centros Populares de Cultura da UNE) e dirigido por Augusto Boal o espetáculo foi uma resposta à ditadura militar brasileira. O show foi montado a partir de músicas, notícias de jornal, citações de livros, cenas e depoimentos de pessoas e pretendia contar a história dos cantores através de suas próprias vozes, problematizando questões políticas e sociais brasileiras.
“Veio a estreia. A plateia aliada, parte essencial do espetáculo, gritava nosso canto, cantava nosso grito. Opinião éramos nós e a plateia! Opinião foi o primeiro protesto teatral coerente, coletivo, contra a desumana ditadura que tanta gente assassinou, torturou, tanto o povo empobreceu, tanto destruiu o que antes chamávamos Pátria. Como coadjuvante sem cara – assim ficou o Brasil perdido no mundo, e nunca mais se levantou — gigante nocauteado em berço de miséria” escreve Augusto Boal em sua autobiografia.
Ao longo da década de 60 e 70, o esforço de democratizar o teatro conseguiu conquistas memoráveis. Augusto Boal, que construiu sua trajetória desde o Teatro de Arena até o Teatro do Oprimido, é dos dramaturgos mais vitais para a criação de um teatro comprometido com uma linguagem que traduzisse a verdadeira identidade brasileira. O militante defendia o teatro como um importante meio de transformação. Indicamos a leitura de seus escritos e peças, como Revolução na América do Sul e Arena conta Tiradentes, que escreveu com Gianfrancesco Guarnieri.
VISUAIS
Várias foram as estratégias adotadas pelos artistas diante da violência e opressão do período ditatorial. Ironia, confronto, escamoteamento, autocensura estão entre as principais formas de lidar com a falta de perspectiva diante da supressão dos direitos mais fundamentais do indivíduo e da proibição das formas mais básicas de expressão política.
Nas artes visuais, há momentos flagrantes, arriscados e paradigmáticos de enfrentamento e de denúncia.
Evandro Teixeira, fotógrafo do Jornal do Brasil, registra com sua câmera ágil e dramática o momento da tomada do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro, momento decisivo do ataque contra os poderes constituídos, na madrugada do dia 1º de abril. “Achavam que eu era fotógrafo do Exército”, conta ele.
Carlos Zilio, preso entre 1970 e 1972 por seu forte engajamento político, explicita numa imagem ao mesmo tempo sintética e brutal a violência do Estado contra seus opositores na obra “Identidade Ignorada”, um registro fotográfico que denuncia a repressão e a recorrente violação dos direitos humanos.
Antonio Manuel, conhecido por sua irreverência e acidez crítica, explicita a absoluta opressão ao lançar mão de material de imprensa (os “flans” que serviam de matrizes para a impressão dos jornais) para destacar frases de denúncia como “Repressão outra vez”. Mensagens que, por estarem naquele momento proibidas, desafiavam o regime com uma secura contundente e direta.