Witzel está certo

Quando nos anos 90 líderes de grupos de extermínio começaram a ser eleitos na Baixada Fluminense, não houve estranhamento. A segurança pública já tinha jogado milhões de pessoas ao desalento. A preservação da vida se transformara no bem mais raro daquela sociedade. Assassinatos, roubos, tráfico de droga e sequestros se sucediam e jogavam ao desamparo as pessoas que viam crescer em suas bocas a escória. A política de insegurança construía como herói o matador.

Quem tinha dinheiro pagava pelas mortes. Comerciantes e empresários pavimentavam com cadáveres a estrada que levava assassinos ao poder. Milhares de votos lavavam os crimes por eles cometidos e os entronizavam como vereadores, deputados e prefeitos. Eles eram vistos desenvoltos, e ainda o são, desfilando em meio aos seus eleitores. Salvadores estendendo as mãos para os deserdados da terra.

É verdade que como matadores nem sempre matavam somente “bandidos”. Se na hora da execução alguém estivesse por perto, eles também eram mortos. Afinal, testemunha não pode existir. Às vezes confundiam suas vítimas, pois ninguém é perfeito. Era um erro matar inocentes, mas era um preço pequeno pela “grande segurança” que proporcionavam. O desamparo cria o consolo. O medo enaltece o matador. A eleição consagra o desejo do povo.

Se um matador era preso. Um matador ainda não muito famoso nem eleito. Conexões eram feitas para interromper o processo na justiça. O candidato a vereador do bairro, buscando sua reeleição, dizia que iria libertá-lo, pois seria um absurdo um homem que tanto bem fizera pela comunidade ser tratado assim, sem contar a volta do medo e da insegurança ao local. Eleito, ele seguia direto para o prefeito, reafirmando seu apoio a este e pedindo providências, o prefeito procurava o governador e este se reunia com o secretário de segurança. Em pouco tempo o matador era visto caminhando tranquilo, pelas ruas do lugar.

Trinta anos depois, a Baixada se estendeu para o estado do Rio de Janeiro inteiro e o estado do Rio se ampliou para todo o país. Witzel não está errado. Ele foi financiado para ser o nosso assassino herói. Os milhões que nele votaram queriam e querem o fim do medo, querem sair do desamparo. Submetidos desde sempre ao terror, viram na face do terror a única opção em que podiam acreditar. Já que todas as outras escolhas foram desacreditadas. ´

É claro que ocorrem acidentes e erros. Mortes de inocentes acontecem. Afinal, um preço pequeno para o grande bem maior. Deus olha para o coração dos arrependidos. O que pecou e errou encontra misericórdia. Famílias se dilaceram na dor dos entes queridos assassinados, mas Deus provê o consolo. Enfim, era a hora dele ou dela. Os deserdados sempre terão uma explicação para suportar o sofrimento que sempre carregaram. A escória em suas bocas sempre será alimentada pelo canalha assassino de plantão.

A paz se faz pelo sangue e pelos cemitérios. Esta é a grande verdade que Witzel nos traz. Ele está certo. Desde os colonizadores, nenhuma outra verdade foi mais bem vivida pela Nação. Ele seguirá levando seus filhos à escola e tropeçando nos cadáveres de tantas outras Ágathas. Limpará seus sapatos e mãos, e prosseguirá na missão para a qual foi eleito. Dizimar o mal, exterminar o bandido, abater o medo, nos devolver a segurança e a paz.

Witzel é a manifestação mais acabada do nosso destino. Nenhuma proposta política, nenhum governo assim dito de esquerda, nenhuma comissão da verdade, nenhuma política de segurança, nem programas sociais, nem bolsas família, nem políticas de geração de renda foram capazes de dar aos que o elegeram a paz justiceira, a vingança que clama aos céus, o sangue alheio que aplaca o clamor por justiça que emana de milhões de vidas, arrastadas na lama da ignorância, do medo e do desespero.

Houve um tempo em que nos foi permitido a ingenuidade. Acreditávamos que matadores canalhas, sanguinários e boçais jamais ultrapassariam as fronteiras das municipalidades das Baixadas que se multiplicavam Brasil a fora. Os notáveis não permitiriam sua ascensão. Bastou uma simples eleição, rápida, democrática, legal para que nosso futuro fosse manifesto. Bendito matador. Que o sangue de tuas mãos se derrame sobre minha face e me permita abrir os olhos para a luz da realidade que agora me cega.

Seropédica, 27/9/2019

José Cláudio Souza Alves

Doutor em Sociologia pela USP e professor titular na UFRRJ.

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