Um novo futuro

  1. Introdução

O fio da catástrofe

Há 87 anos, em fins de setembro de 1931, Luís Carlos Prestes abdicava de prosseguir sua luta revolucionária no Brasil e aceitava emigrar para a URSS e trabalhar como engenheiro de estradas de ferro, retornando em 1935, com sua mulher, Olga Benário, para chefiar um equívoco levante popular em 1935, cujo fracasso alimentará a mitologia militar com a mentira sobre a perversidade dos revolucionários. Dois momentos extremamente controversos de derrota das forças populares em sua revolução. O maior líder revolucionário da AL, cantado por Neruda em sua obra magistral Canto General, chefe inconteste da ala esquerda dos revolucionários tenentistas, aceita eclipsar-se em manto soviético em prol de duvidosas considerações táticas.

Em 2018, o maior líder popular brasileiro, aceita uma ordem de prisão lançada pelas forças do golpe de estado que haviam deposto (por via de um impedimento artificioso) a presidente da república democraticamente eleita, assim como haviam promovido sua condenação por crime que não cometera, e marcharia, proclamando estar confiante nas instituições, a ser trancafiado na masmorra curitibana.

Entre uma data e outra, Getúlio Vargas se suicidaria em 1954 e logo em 1964, os golpistas, derrotados em 30 e 54, enfim conseguem realizar o tão almejado golpe, início da contrarrevolução até hoje vigente. Jango iria para o exílio e lá morreria, em terras argentinas, em 6 de dezembro de 1976.

Assim, um fio de catástrofe se desdobra nesses 87 anos, até as eleições de 2018, vencidas pelo íncubo subalterno da contrarrevolução de 1964, medíocre soldado de seus porões e por 26 anos, até então, ativista político da ultradireita da casa bandeirante.

Aos trancos e barrancos e com estrondosos fracassos, uma terrível trança de miséria intelectual e determinações históricas alienantes nos arrastou até estes dias de setembro de 2019.

2. A civilização do desmanche

Vivemos na civilização do desmanche, condenada, cíclica e inexoravelmente, a liquidar as conquistas emancipatórias da fase anterior, a reduzir-se ao seu mínimo denominador comum, de matriz colonial, nos seus novos estágios neocoloniais.

Habitamos a civilização do desmanche, nada aqui é o que se diz ser, nada do que aqui é jurado e proclamado é verdadeiro. Uma terra do faz de conta. Por detrás dos espelhos que nos encerram, se ergue bruta a verdade verdadeira, o látego e o tronco, a vala comum, a guerra aberta, crônica, permanente, contra as maiorias nativas e estrangeiras, ambas aqui escravizadas, votadas ao escárnio e ao limbo. Ela e não outra, nos governa. Terra do desmanche, terra do arbítrio, terra do medo. Terra exclusiva para os negócios da exportação, terra a serviço do capital mundial, terra neocolonial.

Aqui o cristianismo não é propriamente cristão e os cristãos, em sua esmagadora maioria foram obrigados a sê-lo, e trabalhar para o bem da coroa que os expulsou de suas casas, terras e culturas de origem. Aqui o liberalismo não é liberal, o nacionalismo não é nacional, o socialismo não é revolucionário e o comunismo não é o do partido Marx. Somente a rudeza e boçalidade da casa bandeirante e o equívoco da casa futurista — cujos próceres acreditam ser o Brasil (e todas as ex-colônias ibéricas) formas raquíticas de matriz ocidental, capazes de, com empenho educacional, desabrocharem para a emancipação plena, ou seja, os guerreiros da ordem colonial e os ingênuos e predadores da ordem neocolonial, são verdadeiros, assim como a arte popular e m todas as suas manifestações, sua literatura, música, artes plásticas, teatro, cinema. A universidade não é universidade, a ciência não é propriamente ciência, a Economia Política, assim como a Política e a Filosofia não são propriamente tais, não nascem nem crescem e se voltam para a emancipação, para a felicidade do povo, para a soberania da nação.

Tudo aqui deriva da única e verdadeira função histórica do campo colonial ibérico, nascer e permanecer para todo o sempre colônia e neocolônia. Tudo aqui é a condenação de Sísifo, uma condenação grega, arquetípica, ancestral, poderosíssima. Nossos países são seus escravos, os que nasceram para o capital e sua acumulação por via escravocrata, se escravizaram a esse destino terrível, alienado, à sua eterna contemporaneidade anacrônica, a esse futuro permanentemente desfuturizado pendendo eternamente ás origens escravocratas, movimento de um verdadeiro parafuso sem fim.

Terras de alienação militante, grotesca. Um mundo às avessas.

Onde os proletários não são propriamente proletários, muito menos revolucionários, onde os trabalhadores fabris dos núcleos monopolistas nacionais e estrangeiros não se consideram propriamente escravos do capital. Só o massacre perpétuo e os feitos escabrosos das ordens punitivas do estado, aliadas aos inimigos externos da nação e da emancipação minimamente civilizada dos proletários são verdadeiros.

Nascemos da guerra dos agentes da Coroa contra tudo e todos os que se interpusessem no caminho de sanha por riquezas e sua acumulação, sustentáculo da vigência do poder e permanência da Metrópole colonial.

3. A revolução brasileira e sua guerra revolucionária — o movimento de emancipação dos trabalhadores pela soberania nacional.

Já alcançamos o paraíso da concórdia, da fraternidade e da igualdade no campo das ideias, antes de tudo na poesia e no pensamento crítico. Nos cabe agora, neste quinto século neocolonial, aprender a fazer a guerra a essa guerra ancestral que nos mantém como seu refém.

As burguesias –as nossas e de todo o mundo ex-colonial — não cessam de faze avançar sua revolução burguesa conservadora, desde a revolução portuguesa no século XIII. Nesse complexo histórico, diga-se, somente Portugal, em 1975, realizou uma revolução burguesa radical com tinturas socialistas, sete séculos depois.

Neste exato instante, estamos imersos em um novo episódio revolucionário dessas classes, sua revolução na contrarrevolução de 1964. Contrariamente ao que supunham (e para a nossa infelicidade, ainda supõem) os epígonos da política emancipatória da casa futurista, sua esquerda da ordem, em 1988 não havíamos liquidado a contrarrevolução, simplesmente havíamos saído da ditadura política e proclamado uma nova constituição que nasceu contestada pelas forças conjugadas da casa bandeirante, como sendo a constituição dos deveres maiores que os haveres, ou seja, que não cabia na economia da contrarrevolução, que se manteve e se mantém intocada até os dias atuais. Todo o trajeto de desconstitucionalização desta constituição tem como carro-chefe a limpeza desta da ganga social, dos princípios redistributivos que a nortearam, de seu retorno aos marcos do ancestral exclusivismo do capital, pedra angular do golpe de 1964, ao qual agora elas, enfim, se aproximam, através das reformas liquidadoras dos controles sociais sobre o capital — a reforma trabalhista, da previdência e das demais que se operam na expansão do estado de exceção.

Agora é chegada a nossa vez, no quinto século neocolonial. As colônias africanas de Portugal já se libertaram. Até ousaram denominar suas revoluções de socialistas, embora, de fato, não as tenham realizado.

Para isso é mister criarmos um vasto movimento popular emancipatório, um movimento de emancipação dos trabalhadores pela soberania nacional, que enfim realize a unidade dos escravos do salariato, escravos de todas as ordens subordinadas ao capital, de todas as etnias, religiões, identidades sociais, artes populares e camadas assalariadas de todo o tipo, enfim, do povo novo brasileiro, não mais propriamente estrangeiro de todas as origens, mas do povo brasileiro, povo novo, novidade na história, como já afirmava nosso mestra Darcy Ribeiro. Um movimento que una o povo através daquilo que o une, a escravidão ao capital, pois o que o desune pertence à história longa, e a emancipação pertence ao agora, à história do tempo presente, à urgência de liquidar a miséria deste capitalismo da miséria por meio de uma guerra exclusivamente popular.

4 . Síntese

Neste exato momento as burguesias agrárias e seus capangas atearam fogo nos últimos biomas florestais restantes. Um punhadinho insignificante de delinquentes e criminosos ousa impor sua vontade aos 200 milhões de brasileiros e a toda a humanidade, com respaldo declarado das forças radicais regressistas da casa bandeirante, hoje instaladas e regentes nos três poderes.

A maioria declarada das burguesias, das classes proprietárias nacionais, que já havia abandonado definitivamente a luta pela soberania nacional em 1964 — componente essencial da sua contrarrevolução -, agora abandona seus compromissos com a classe trabalhadora, ao liquidar parte substantiva de suas conquistas emancipatórias sob o capital, assim como abandona declaradamente o próprio país, ao transitar sem consulta popular ao campo geoestratégico norteamericano a tal ponto de vir a se transformar em novo protetorado norteamericano.

A casa bandeirante pôs à sua testa um seu funcionário subalterno, que vai impondo e expandindo no grito o estado de exceção, entre lamento e ranger de dentes dos próprios donos da casa, no fundo felizes por não necessitarem sujar as mãos.

A casa bandeirante e a maioria dos habitantes da casa futurista, mais as suas Forças Armadas se contentam em funcionar como aríete e força de ocupação para a perpetuação do projeto neocolonial ancestral, custe o que custar.

Em nome dos interesses exclusivos do capital financeiro, a casa bandeirante está destruindo a nação. Em nome de seus interesses exclusivos de classe, os proprietários unidos do Brasil estão demolindo o estado nacional, desmanchando todas as suas conquistas emancipatórias.

E fracassarão, e estão fracassando diariamente e continuarão a fracassar, porque não tem nenhum projeto de resolução do complexo de catástrofes engatilhadas em todas as dimensões da reprodução social, agora em processo de colapso. O seu único projeto é o de ampliar a taxa de acumulação de capital através do sugadouro de mais valia da dívida pública interna e que tudo o mais vá para o inferno.

Vieram ao poder com o único propósito de realizar a sua exclusiva revolução, regressista e tirânica, aquela dos interesses minoritários do país, uma revolução das e para as minorias.

Daí o desalento monossilábico de Armínio Fraga, a perplexidade cautelosa e timorata de Tasso Jereissati, a resignação militante, veemente e envergonhada de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, embrulhados em palavras que atestam a vitória do avanço do projeto de reformas.

Ao trocar a nação e sua máxima expressão política e ideológica nos marcos da nossa revolução burguesa conservadora, a Economia Política do Desenvolvimento, mãe do Desenvolvimentismo e, nela, a função estratégica vital e insubstituível do estado nacional como indutor de políticas públicas (ou seja, de investimentos para a acumulação de capital, indissoluvelmente vinculada ao crescimento qualitativo da economia, ou seja, do assim chamado desenvolvimento econômico, distinto do simples crescimento), pela administração do caixa da economia, liquidando o estado e suas funções vitais de capitalista coletivo, as classes proprietárias e todas as suas formas de dominação do estado e da economia — os três poderes e o complexo de suas empresas — as burguesias unidas, a atuar como vero movimento de emancipação destas, estão a cometer um real suicídio político, social e econômico, um suicídio civilizacional.

Completam, com isso, a obra de sua contrarrevolução de 1964, até hoje incompleta, por obra do entreato da Nova República, agora falecida.

Não deixam ao povo brasileiro outra tarefa que não seja a de enfrentar com toda a força possível, a guerra que o avassala e esmaga, esta revolução na contrarrevolução de 1964.

E para enfrentar o movimento de emancipação das burguesias só o movimento de emancipação dos trabalhadores pela soberania nacional.

Paulo Alves De Lima

Coordenador do IBEC, Economista e Cientista Social. Professor aposentado, UNESP - FATEC. Escreveu Pensando com Marx, Associação dos comunistas unitários.

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