Apesar de estar entre as dez maiores economias globais, o Brasil passou a ocupar, em 2018, a 9ª pior posição em matéria de desigualdade de renda medida pelo coeficiente de Gini num conjunto de 189 países, de acordo com dados da OXFAM1. Os dados revelam que apenas 6 bilionários brasileiros controlam a mesma riqueza que metade do povo brasileiro, ou seja, 100 milhões de pessoas. O IBGE calcula que os rendimentos mensais médios do 1% mais rico do país representam 36,3 vezes mais que aqueles dos 50% mais pobres. Considerando os dados das declarações de IRPF, tal razão seria de 72 vezes. Segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, divulgado pela Folha2, o Brasil é hoje o país com regime democrático burguês que mais concentra renda no 1% do topo da pirâmide. Perdemos apenas para o Qatar, país absolutista de apenas 2,6 milhões de habitantes e governado pela mesma dinastia desde o século XIX.
A partir de dados que combinam pesquisas domiciliares, contas nacionais e declarações de imposto de renda, o relatório mostra que o 1% super-rico (cerca de 1,4 milhão de adultos) captura 28,3% dos rendimentos brutos totais e recebe individualmente, em média, R$ 140 mil por mês pelo conjunto de todas as suas rendas. Por sua vez, os 50% mais pobres (71,2 milhões com renda média de R$ 1.200) ficam com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos, menos da metade do que é recebido pelo 1% no topo.
Evidentemente que chegar a tais marcas de desigualdade não foi um acidente natural, pelo contrário, esta situação gravíssima é produto de um projeto das elites que marcaram desde o nascimento até o desenvolvimento de nossa formação social e econômica dependente. Este não será o centro do presente artigo, mas sem o enquadramento global de nossa condição dependente, produto de um capitalismo sui generis, exportador de matérias-primas e forjado na superexploração da força de trabalho (com raízes na escravização do povo negro), dificilmente se pode compreender as determinações do presente e a natureza da crise atual.
Nesta conjuntura econômica marcada pela estagnação e por uma ofensiva da burguesia sobre os direitos dos trabalhadores é que o Congresso Nacional começa o debate sobre uma “reforma” tributária. Ao passo que nos últimos cinco anos a desigualdade tem aumentado muito, a proposta apresentada no Congresso flagrantemente responde apenas aos interesses da burguesia e do governo, com vistas a dirimir os efeitos da crise fiscal gerada por eles mesmos e recuperar as taxas de investimento e lucros privados. Por meio de um discurso de que é necessária uma “simplificação” da tributação, a justiça tributária não entra no debate.
A possibilidade de se utilizar a tributação como meio de redução das desigualdades é algo importante, entretanto, nem passa perto da proposta relatada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) que será avaliada pelo Congresso. O centro do que se está discutindo é a unificação de impostos indiretos tais como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços — ICMS (6,7% do PIB), o Imposto sobre Serviços — ISS (1% do PIB), o Imposto sobre Produtos Industrializados — IPI (0,8% do PIB) em um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), extinguindo contribuições sociais como a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social — Cofins (3,2% do PIB) e a contribuição para o Programa de Integração Social — PIS (0,7% do PIB), que possuem vinculações constitucionais destinadas ao custeio da seguridade social.
O discurso da simplificação da arrecadação esconde o verdadeiro objetivo da proposta: a destinação destes recursos. De acordo com a Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fatorelli: “A vinculação dessas arrecadações ao orçamento da seguridade social decorre do fato delas serem contribuições. Na medida em que se transforma em imposto, altera-se a natureza do tributo e acaba-se a vinculação”3. Dessa forma, em poucas palavras, o governo “simplifica” a arrecadação e reorienta os recursos que poderiam ser destinados às áreas sociais para fazer superávit primário, como manda o sistema da Dívida. Em conjunto com a PEC dos gastos de Temer e a Reforma da Previdência de Bolsonaro e Guedes, pode significar um desmonte ainda maior dos mecanismos de seguridade social e de áreas de interesse da maioria do povo como a saúde e a educação.
Há uma percepção relativamente paradoxal (e individualista) que a população brasileira tem da tributação, na qual todos querem mais serviços públicos do Estado e, ao mesmo tempo, pagar menos impostos. É uma percepção real de que os pobres pagam muito e recebem péssimos serviços públicos, mas contaminada com a ideologia de uma classe dominante que paga muito pouco, recebe muito do Estado, mas propaga a ideologia do Estado Mínimo e agita a ideia de que paga demais.
Esta distorção tem se reduzido na consciência popular e nós militantes da esquerda socialista revolucionária devemos ajudar na educação da população neste sentido. Segundo recente pesquisa divulgada também pela OXFAM Brasil em abril de 20194, 78% dos brasileiros concordam que quem ganha mais deve pagar uma taxa maior de impostos do que quem ganha menos, 7% a mais do que demonstrava a mesma pesquisa em 2017. Segundo a pesquisa, é ainda mais forte o lastro social para uma reforma tributária que vá além da simplificação e do aumento de eficiência do sistema, mas que tenha efeitos redistributivos. Quando perguntados sobre o destino final dos tributos, fica também evidente o espaço de solidariedade social: 94% concordam total ou parcialmente que o imposto pago “deve beneficiar, principalmente, a educação, moradia e saúde dos mais pobres”. Ou seja, uma percepção que choca-se frontalmente com o projeto econômico em curso e um espaço político para agitar a necessidade que os ricos paguem pela crise que eles criaram.
Por fim, no ínterim do debate da “reforma” tributária preconizado pelas elites, necessitamos imediatamente aumentar a agitação em torno da palavra de ordem “taxação das grandes fortunas”. Esta precisa ser uma marca daqueles que militam pela construção de uma nova esquerda que não caia na sedução da conciliação de classes e tenha coragem de enfrentar os ricos e poderosos. Como bem o PSOL, por meio da candidatura de Luciana Genro à presidência da República, pautou em 2014: “Fazer uma revolução tributária, invertendo a estrutura desigual e regressiva que tributa principalmente os assalariados para outra que tribute principalmente a grande propriedade. Instituir o imposto sobre as grandes fortunas, com alíquota de 5% ao ano sobre patrimônios a partir de 50 milhões de reais”5. Frente à reforma tributária dos de cima precisamos pautar uma revolução tributária dos de baixo.
1 OXFAM Brasil: País Estagnado: Um Retrato das Desigualdades Brasileiras 2018, in: <oxfam.org.br>
2 In: <https://temas.folha.uol.com.br/desigualdade-global/brasil/super-ricos-no-brasil-lideram-concentracao-de-renda-global.shtml>
3 In: <https://auditoriacidada.org.br/entenda-por-que-a-reforma-tributaria-podera-acaba-com-a-previdencia-social/>
4 In: <https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/publicacoes/relatorio_nos_e_as_desigualdades_datafolha_2019_final.pdf>
5 Programa de Governo do PSOL, 2014. In: < https://cdn.lucianagenro.com.br/wp-content/uploads/2014/07/programa.pdf>
Bernardo Corrêa
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da direção do PSOL-RS.