“Quem faz gol fica rico”

A frase repetida recentemente por Emerson Basílio, treinador das categorias de base do Santos, é emblema do grande negócio que se tornou o futebol moderno. Até a década de 1930 era parte do senso comum a expressão: “entre o trabalho e o futebol, preferiu o trabalho”[1]. Até a generalização do “profissionalismo” no futebol brasileiro o jogador de futebol típico era o inglês ou filho de ingleses, ou outro estrangeiro. Posteriormente foi substituído pelo “candidato a bacharel”, que tinha tempo para treinar, justamente porque não precisava trabalhar. Somente ao fim de um longo processo é que surgiu o jogador em tempo integral, o boleiro 100%. Esse processo de popularização não apenas do esporte, mas a popularização da prática do esporte, corresponde à emergência do pobre como protagonista na história do futebol brasileiro. Não à toa que o livro de Mário Filho — “O negro no futebol brasileiro” — acompanha os primeiros momentos do futebol no Brasil, desde o “esporte bretão”, praticado por estrangeiros brancos, até “a ascensão social do negro” que só foi possível devido à profissionalização do atleta de futebol, na década de 1930.

Em um país em que a segregação social é uma regra histórica, inabalável, eram comuns histórias como as de Domingos da Guia, que pensando em seu futuro “não podia contar com o futebol para viver, apesar de ser o Domingos […] foi mata-mosquito em plena glória, andando de casa em casa com sua bandeirinha amarela, com seu regador de creolina. Ganhava uma miséria, ia vivendo, porém, e quando chegava o fim do mês tinha o seu dinheiro. O dinheiro da Saúde pública era certo, o do futebol, vinha e não vinha”[2]. Longe ainda das cifras astronômicas que passarão a encher os bolsos de alguns e povoar o imaginário coletivo nas décadas de 1980 e 1990 em diante, o profissionalismo mudaria para sempre a relação do povo com o futebol. Para bem e para mal.

Quantos e quantos relatos produzidos para emocionar, mostrando histórias de superação de limites, de vidas e famílias transformadas pelo sucesso repentino no esporte abarrotam programas esportivos, eles também, um produto do futebol profissional e suas cifras astronômicas[3]. Mas o idílio dos programas de TV em nada reflete o cruel processo de “seleção e eliminação” de jovens atletas, majoritariamente vindos das periferias das cidades, nas assim chamadas peneiras, na melhor das hipóteses, patrocinadas por clubes de futebol, na pior, por empresários ou “olheiros”, como são chamados no futebol, camada parasitária que vive de explorar sonhos e garotos, muitas vezes de modo diretamente criminoso[4].

Mas quem mesmo fica rico com o futebol? Há muito que o negócio do futebol passou a apostar menos na sorte do que na produção direta pelo clube de atletas de alto rendimento. A categoria de base é hoje um “negócio da china”, verdadeira indústria extrativista que liga os negócios nacionais aos interesses dos poderosos clubes da Europa. Tratados como Commodities por seus clubes, alguns atletas são utilizados no campeonato local, outros, os melhores, são exportados, no mais das vezes aos 17 anos para as principais ligas europeias, para serem, no final da carreira, recomprados 10, 20 vezes mais caros, para aqui encerrarem seu ciclo produtivo.

O clube seleciona e forma o jogador, mas o lucro de sua venda, quase invariavelmente, fica nas mãos de um atravessador, o dito, empresário, que não coloca um tostão no processo, mas fica com fatia considerável do lucro. Quantos clubes vendem suas “joias” ano após ano e estão quebrados? Muitos desses empresários são dirigentes ou laranjas destes, que enriquecem na razão direta do empobrecimento do futebol nacional. Os clubes europeus tornam-se verdadeiras seleções mundiais de um negócio de proporções estratosféricas, tornando o negócio do futebol um dos mais lucrativos do planeta. A seus parceiros locais resta o trabalho de extrair as joias que cada vez mais cedo são levadas para os grandes centros, depois que o seu ciclo se encerra nas principais ligas, é hora de novamente os recontratar, infinitamente mais caros do que foram vendidos, mesmo estando em fim de carreira, verdadeiro paradoxo do subdesenvolvimento transposto para o esporte.

O clube de maior torcida no país se tornou recentemente o de maior receita e muito disso se deve à venda de jogadores. O Flamengo lucrou meio bilhão de reais nos últimos anos apenas com a venda de “joias” como Vinícius Jr., Lucas Paquetá, Jorge e Reinier[5], entre outros. Desde que passou a ser administrado por capitalistas o clube passou a ser tratado como exemplo de “austeridade”, até 2018, e de gastança, depois de 2019. Mas nos detenhamos no período de austeridade… A gestão Bandeira de Melo (2013–2018) não teve grandes méritos futebolísticos, suas virtudes, segundo a imprensa esportiva, foi o saneamento das finanças do clube, inserindo no vocabulário da “mulambada” a palavra “austeridade”, que, como se sabe, é cortar na própria carne, na própria carne dos outros, de preferência.

O trágico resultado da austeridade foi o incêndio que vitimou 10 jovens atletas das categorias de base do clube, episódio mais triste da história do Flamengo e que em 8 de Fevereiro de 2019 completa um ano. O tão elogiado modo profissional de lidar com o futebol mostrou ali seu lado mais sombrio. Embora a torcida tenha feito um documento, com milhares de assinaturas, exigindo do clube que utilizasse o prêmio da Libertadores da América para auxílio às famílias, a diretoria do clube segue sendo meramente “profissional”, “austera”, apegando-se à “jurisprudência” ou subterfúgios similares. É verdade que “nenhum dinheiro vai trazer os jovens de volta”, mas essa lamentação só cabe às famílias, não ao clube. Por mais que o mau-caratismo seja democraticamente distribuído entre dirigentes de futebol, o modo particularmente abjeto como tem se comportado os dirigentes rubro-negros envergonha eternamente os torcedores, que exigem que o caso não seja esquecido.[6]

É paradoxal que a profissionalização do futebol tenha, por um lado, dado acesso aos pobres, e, sobretudo aos negros, ao futebol no Brasil, e por outro, que o tenha tornado um negócio milionário e dado origem ao futebol moderno. Um esporte em que a ambição pessoal de jogadores e dirigentes se sobrepõem ao prazer do jogo, e o amor pelo clube e a diversão nos estádios, cada dia mais elitizados, sobretudo, depois da copa do mundo e suas arenas padrão FIFA, dá lugar à busca incessante por lucro.

[1] O Negro no futebol brasileiro, p. 189.

[2] Idem, p. 186.

[3] https://esporte.ig.com.br/futebol/2019-09-11/metade-dos-jogadores-no-brasil-ganha-so-um-salario-minimo-e-isso-nao-deve-mudar.html

[4] https://www.publico.pt/2019/01/16/sociedade/noticia/trafico-seres-humanos-futebol-15-jogadores-vitimas-tres-anos-1858003

[5] https://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/craque-o-flamengo-faz-em-casa-e-vende-bem-crias-do-ninho-geram-quase-meio-bilhao-em-tres-anos.ghtml

[6] https://naoesquecemos.com.br/

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia da UFCG, lateral do Ponta Firma FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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