O futebol feminino e a cultura do improviso no Brasil

O Futebol Feminino foi reprimido por lei no Brasil por décadas. “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este feito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Assim reza o decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, que certamente não impediu que mulheres praticassem futebol amadoristicamente, nas várzeas, nas periferias, em preliminares de times que detinham alguma coragem, mas tal fato causou um imenso prejuízo ao futebol profissional[1]. O que já era ruim em 1941 ficou ainda pior depois do Golpe Militar de 1964. Enquanto o Brasil patinava na brutalidade, na burrice e no machismo, muitos países criaram ligas fortes em múltiplas divisões, algo que só agora começamos a fazer.

Só o talento individual e a persistência explicam o estranho fato de um país chegar a ser vice-campeão mundial (2007) sem ter sequer uma liga regular, como ocorreu por estas terras. E por vergonhoso que possa ser o fato de que o futebol profissional feminino por aqui ter se estabelecido por obrigação[2], o fato é que hoje é uma realidade. Falta ainda estabelecer competições em todas as divisões e idades e regulamentar as categorias de base. Mas hoje é inegável o sucesso, inclusive de público, do futebol feminino. Também pudera, um país que tem a sorte de ter uma Marta, uma Cristiane e uma Formiga, não poderia desperdiçar tantas chances de ser vitorioso. Marta foi até enredo de escola de Samba, os Inocentes de Belford Roxo levaram sua luta para a “Avenida” no último carnaval: “Rainha sim/No talento, na luta e na vocação/ há tantas mulheres por aí assim”, dizia o samba enredo…

Embora ainda seja necessário “escavar” os sites esportivos por notícias sobre o futebol feminino, não resta dúvidas de que já existe uma cobertura incipiente, com bons sites especializados[3], e mesmo a mídia corporativa já abre espaços para comentaristas de fato, e não mais belas jovens que participem apenas cenograficamente, como era prática até um dia desses. Mesmo no futebol masculino, já não causa tanta estranheza árbitras e auxiliares mulheres. Mas as mulheres continuam reivindicando mais espaço nos postos de direção de clubes, nas comissões técnicas em particular. Dos 16 times que disputam a Série A1 do futebol nacional, apenas duas mulheres comandam suas equipes: Tatiele Silveira, da Ferroviária, e Emily Lima, do Santos. Coincidência ou não, as duas equipes dirigidas por mulheres lideram a competição com 12 pontos cada.

A Ferroviária é a atual campeã brasileira, e consegue no feminino um sucesso que os apaixonados torcedores de Araraquara há muito não assistem no masculino. Sua conquista nos pênaltis contra o Corinthians no Brasileirão de 2018 foi daqueles momentos de superação que só o esporte proporciona. Diga-se de passagem, o Corinthians não perdeu no tempo normal nem pra Ferroviária nem pra ninguém, e completou uma série invicta de impressionantes 48 jogos[4], foram campeãs da Libertadores e só perderam para o São Paulo na quarta rodada do Brasileiro de 2020.

O Santos, que lidera o campeonato brasileiro, contratou ninguém menos que Cristiane, uma das maiores jogadoras do mundo em sua posição, indicada a melhor jogadora do mundo em 2007 e 2008 e é a maior artilheira da Seleção em jogos Olímpicos, independente de gênero, com 14 gols. As “Sereias da Vila” já tem tradição na modalidade, enquanto outros times só aos poucos vão percebendo a necessidade de investimento e perseverança, pois no futebol vale a máxima: “quem chega atrasado ou comete falta ou leva caneta”. E tem muito clube grande passando vergonha no nacional…

O futuro da modalidade depende de uma visão de longo prazo, que não é muito a praia de nossos cartolas. É preciso estruturar competições do infantil ao profissional, impedindo assim a “fuga” de talentos, e isso sem nacionalismo, é uma questão de sobrevivência mesmo. Não é mais possível esperar que apenas o talento individual e o sacrifício nos salvem do vexame de nossos dirigentes. É evidente que temos o dever de reconhecer o sacrifício das pioneiras, desde as mais consagradas até as anônimas, mas é hora de superar a cultura do improviso e dar as condições para que talentos sejam descobertos na base. Em competições municipais, estaduais e nacionais, coisa que a CBF não faz na modalidade. A CBF não tem um plano para o Futebol Feminino e nunca teve. Ela apenas reagiu ao sucesso da seleção feminina, mesmo assim timidamente e sob pressão de outras instâncias do futebol mundial.

Por talento e superação temos um grande futebol antes mesmo de termos uma grande liga! Foi a coragem de pequenos clubes como o Araguari de Minas Gerais[5], entre outros, que forçou as “entidades” a agir. O sucesso do Campeonato brasileiro feminino deve levar os torcedores a cobrarem seus clubes mais investimento na modalidade, paridade salarial e cobertura jornalística adequadas. É fundamental que as mulheres estejam em postos de decisão e comando dentro e fora dos times, no meu, no seu clube! Celebrar a superação das pioneiras não é incompatível com a superação da cultura do improviso!

[1] https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/mulheres-passaram-40-anos-sem-poder-jogar-futebol-no-brasil/

[2] https://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/montar-time-feminino-e-exigencia-para-equipes-da-serie-a-2019-veja-situacao-dos-clubes.ghtml

[3] Bom exemplo disto é o site: https://planetafutebolfeminino.com.br/

[4] https://trivela.com.br/aplausos-para-a-serie-invicta-de-48-jogos-do-corinthians-o-maior-feito-do-nosso-futebol-feminino-de-clubes/

[5] https://www.hypeness.com.br/2019/06/pioneiras-conhecer-a-historia-do-futebol-feminino-e-essencial-para-a-valorizacao-do-esporte/

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia da UFCG, lateral do Ponta Firma FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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