A crise do governo Bolsonaro/Mourão segue aprofundando, sem ter perspectiva de solução. Após 11 meses do governo PSL/DEM o castelo de cartas sobre o qual os setores mais à direita da burguesia brasileira montaram uma enorme farsa, em alguns aspectos semelhante ao discurso produzido há 30 anos, quando Collor de Melo se elegeu, tem tudo para desmoronar.
O enfrentamento se iniciou ainda em 2018, durante a transição. O anúncio dos primeiros nomes de seu Ministério, e algumas medidas que prometia tomar, reascenderam o clima de campanha eleitoral. A polarização vivenciada na disputa das urnas não foi estancada, como de costume no regime democrático-burguês, com a posse do governo eleito.
Os números das pesquisas de opinião realizadas no início do ano atestaram o começo da crise. Eleito com 55% dos votos válidos, em janeiro/2019 viu uma discreta elevação de seu prestígio: 59% dos entrevistados tinham a expectativa de que o governo Bolsonaro/Mourão seria ótimo/bom (Datafolha). Em seguida, Flávio Bolsonaro foi implicado no Caso Queiroz, que expôs o corrupto esquema das “rachadinhas” na ALERJ; no mês seguinte veio à tona a farra com o dinheiro público no “laranjal do PSL”. A corrupção, uma das principais bandeiras moralizadoras levantadas na campanha eleitoral, atingiu em cheio a família, o partido e os ministros de Bolsonaro nos primeiros 100 dias de governo. Já em março a avaliação positiva despencou nas pesquisas para 34% (IBOPE). Com algumas oscilações, esse percentual tem se mantido na margem de erro. Pesquisa divulgada em 13/11 (IPESPE) aponta variação nos dois extremos: de 33% para 35% entre os que apoiam o governo e de 38% para 39% entre os que o rejeitam.
Quem estava na casa 58?
Em meio à crise crônica do governo, a imprensa tornou público parte do depoimento dado à polícia pelo porteiro do condomínio de luxo onde Jair Bolsonaro morava antes de assumir a presidência da República. A informação de que o “Seu Jair” teria autorizado a entrada de Élcio de Queiroz, tornou mais forte a suspeita do envolvimento da família do chefe do Poder Executivo brasileiro com o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) em março/2018. Élcio e Ronnie Lessa, vizinho do Seu Jair, estão presos, suspeitos de executarem Marielle e Anderson.
A tentativa de afastar o nome do Presidente da República das investigações sobre o assassinato levou uma das promotoras de justiça do Ministério Público do Estado que estava à frente das investigações, a afirmar em poucas horas, que o porteiro estava mentindo. Após ter sido revelado que ela não tinha elementos técnicos para essa afirmação, e que teria participado ativamente da campanha eleitoral de Bolsonaro, o MPRJ foi pressionado a afastá-la do caso.
Para piorar a situação, após o vereador Carlos Bolsonaro ter divulgado vídeos onde mostrou a tela do computador com os registros de entrada no condomínio, surgiram denúncias de que os mesmos possam ter sido adulterados e que a voz seria de um outro porteiro. No afã de salvar o filho, Jair afirmou em entrevista que para evitar que as gravações fossem adulteradas, “nós pegamos toda a memória da secretária eletrônica”. Ameaçado ser denunciado por obstrução da Justiça, no dia seguinte recuou: “o que eu fiz foi filmar a secretária eletrônica”.
Um presidente sem partido
A língua comprida do Seu Jair parece não conhecer limites. Desde setembro o racha interno no Partido Social Liberal — PSL já dava sinais de que iria se agravar. A crise estourou após vazar um vídeo em que Bolsonaro diz para um eleitor “esquecer o partido”, afirmando que Luciano Bivar (presidente do PSL) estava queimado e poderia queimá-lo também.
O centro dessa crise é a disputa pelo controle dos milhões em verbas públicas destinadas aos partidos políticos. Para a campanha de 2018 o PSL recebeu cerca de R$ 17,5 milhões (daí surgiram os casos das candidaturas laranjas). Com o enorme crescimento da bancada parlamentar, em 2020 devem receber mais de R$ 200 milhões do fundo eleitoral, além de outros R$ 68,4 milhões do fundo partidário. Os bolsonaristas acusam o PSL de ser “dinheirista”, e são acusados por seus opositores com o mesmo adjetivo.
No meio dessa disputa pelo cofre, caíram a líder do governo no Congresso (Joice Hasselmann) e o líder do PSL na Câmara dos Deputados (delegado Waldir). Agora, cerca de um mês após o ápice da disputa e troca de acusações, Bolsonaro se decidiu pela criação de um novo partido de aluguel (Aliança pelo Brasil) deixando aberta a briga para deputados e senadores abandonarem o PSL. A briga deverá se estender para a disputa judicial, pela divisão dos fundos eleitoral e partidário.
Lula está livre. Para fazer o quê?
Em um cenário de aprofundamento da crise econômica, política, social e ambiental, estando o país sob o comando de um presidente “incendiário”, com baixa popularidade, e em crise com seu próprio partido, o instinto de sobrevivência da burguesia foi alertado. Em um país onde a crise de representatividade também se abateu sobre os partidos vinculados ao antigo regime (a ditadura militar), bem como sobre os principais partidos da democracia-burguesa (PSDB, MDB e PT).
À crise entre os donos do poder confronta-se a onda de mobilizações dos trabalhadores, da juventude, do povo pobre ou das nacionalidades oprimidas, que estourou no cenário da luta de classes em nível mundial. Antes que os ventos revolucionários cheguem por aqui, a classe dominante no Brasil já procura figuras no cenário político nacional que possam manter o lucro de seus negócios. Procuram costurar um acordo amplo, que garanta a estabilidade do regime.
Ao sair da prisão Lula já buscou apaziguar os ânimos, orientando a militância a esperar pelas eleições de 2022. No discurso que fez em São Bernardo do Campo, foi bem explícito: “Tem gente que fala que precisa derrubar o Bolsonaro, tem gente que fala em impeachment. Veja, esse cidadão foi eleito. Democraticamente, nós aceitamos o resultado da eleição. Esse cara tem um mandato de quatro anos”. Lula quer ser apenas um pacífico opositor de Jair Bolsonaro. E quer que a classe trabalhadora siga essa política, mantendo a harmonia com o capitalismo e seu regime democrático-burguês.
A libertação de Lula pela Justiça burguesa tem cheiro de acordão, daqueles do tipo “com o Supremo, com tudo”. Em liberdade, mas ainda não inocentado, o ex-presidente joga com esse trunfo nas mangas: controlar o movimento de massas, para que não seja influenciado pelas insurreições que atingem Equador, Chile, Bolívia, Haiti, Líbano, Iraque e Hong Kong. Caberia ao STF garantir a inocência de Lula e a paralisia das investigações do Caso Queiroz, favorecendo a família presidencial. Costura-se a reabilitação da cúpula petista denunciada pela Lava Jato e a destinação de Sérgio Moro para assumir a vice-presidência na chapa de Bolsonaro nas próximas eleições, colocando Mourão para escanteio.
Fora da prisão, José Dirceu deverá ser o organizador da retomada do foco petista nas eleições de 2022, cuja campanha deve ter como eixo a comparação entre os governos de Lula e de Bolsonaro, pois, como disse Lula no comício em Salvador-BA, “quem quiser que o PT faça uma autocrítica, que faça você”, deixando claro que vai continuar com a política da colaboração de classes: “(…) ninguém foi tão amplo. Recebi no Palácio do Planalto os maiores empresários, recebi príncipes. Naquele Palácio entrava sem-teto, LGBT, pessoa com deficiência. O objetivo era mostrar que esse país era de todos”.
Traições da burocracia não derrotaram a classe
A promulgação da reforma da Previdência no início de novembro encerrou mais uma batalha perdida pela classe trabalhadora, onde a traição da burocracia sindical cumpriu papel determinante. Após a votação em primeiro turno, ainda na Câmara dos Deputados, todas as Centrais Sindicais (com exceção da CSP-Conlutas) fizeram manobras para tirar a classe trabalhadora das ruas e jogar para dentro do parlamento burguês o destino da luta contra a destruição da Previdência Social.
Sem a pressão das ruas Paulo Guedes, Bolsonaro e Rodrigo Maia ficaram à vontade para negociarem alguns ajustes que permitissem a aprovação por ampla maioria, deixando a oposição oficial subir ao palanque para criticar a reforma. Mas os braços sindicais dessa mesma oposição parlamentar se negaram a convocar uma Greve Geral que poderia mudar completamente a correlação de forças.
Jogaram a culpa na “onda conservadora”, quando na verdade a falta de uma direção sindical e política com a radicalidade necessária para o enfrentamento às medidas de ajuste do governo federal, é que foi o fator decisivo para os trabalhadores não saírem às ruas e sofrerem essa derrota. Outro fator importante foi o pacto firmado entre os governadores e a equipe econômica do governo Bolsonaro para que a reforma seja estendida a estados e municípios. Aí se viu uma segunda traição, feita pelos partidos de oposição que governam alguns estados: enquanto seus deputados e senadores subiam à tribuna para condenar a reforma, seus governadores pactuavam com Guedes e Maia o conteúdo da PEC paralela.
Mas a classe trabalhadora não foi derrotada em sua disposição de luta. Por isso a burguesia precisa de um novo e amplo acordo para salvar o governo ultraliberal de Jair Bolsonaro e continuar encaminhando seus projetos de privatização do serviço público e de submissão às corporações multinacionais e sua sede de lucro. A classe trabalhadora segue indignada e disposta a lutar. Aguarda apenas que um palito de fósforo seja aceso, para produzir uma explosão social. PSOL e CSP-Conlutas podem cumprir esse papel, mas precisam se livrar de suas próprias amarras.
Um ano de lutas, apesar da cegueira das direções
Diferentemente da análise pessimista feita pela maioria das organizações de esquerda no país, enxergamos muita disposição de luta pela classe trabalhadora brasileira. Em 2019 saímos às ruas para lutar em defesa da Educação, da Previdência Social, das empresas estatais, de nossos salários, nossos direitos e nosso futuro.
Milhões ocuparam as ruas em defesa da Educação. Neste ano foram três “tsunamis” que encheram de juventude e irreverência as passeatas e os atos de protesto por todo o país, em maio e agosto. A luta contra os cortes de verbas nas universidades e institutos federais, e depois contra o programa “Future-se”, obrigou o governo a liberar os recursos que haviam sido “contingenciados”.
Em 14/junho a Greve Geral contra a reforma da Previdência, apesar de parcialmente boicotada pela burocracia sindical, demonstrou que as ruas ficam pequenas quando as Centrais Sindicais se unem e convocam o povo a lutar. E junto a isso, demonstrou a enorme necessidade de se construir uma nova e aguerrida direção para o movimento sindical brasileiro, tarefa que a CSP-Conlutas e os sindicalistas do PSOL têm que tomar como prioridade.
Ainda tivemos a luta contra a privatização dos Correios e diversas greves, dispersas, dos servidores estaduais e municipais. A luta ambiental voltou a mobilizar centenas de milhares em várias cidades do país, que aderiram à Marcha Mundial pelo Clima, denunciando o sistema capitalista e organizando milhões de pessoas em todo o planeta, a brigar pelo futuro da humanidade. E ainda teve a Mobilização Nacional Indígena, com os povos originários adotando os métodos de luta da classe operária e se enfrentando diretamente contra o capitalismo, na disputa pela manutenção, defesa e ampliação de seus territórios.
Organizar a luta contra a reforma administrativa
Quando fechávamos essa edição de Luta Socialista, Jair Bolsonaro declarou que pretende “mandar uma proposta a mais suave possível”, após adiar por três semanas a divulgação do texto definitivo da reforma administrativa. Bolsonaro sabe que a fragilidade de seu governo pode não aguentar a pressão dos servidores públicos, em uma conjuntura de insurreições que percorrem várias partes do mundo, agravada pela crise interna que rachou seu partido ao meio e os pífios resultados da economia. Sabe que pode contar com a traição das direções sindicais, mas sabe também que a classe trabalhadora pode passar por cima dessas direções, e se chocar diretamente contra seu governo. Seguiremos nos inspirando na luta internacional daqueles que se enfrentam contra a globalização capitalista. Não vivemos em uma bolha e o Brasil não é uma ilha. Direitos ficam, Bolsonaro sai!