O ano político vai terminando com mais derrotas do reformismo burguês — fantasiosamente socialista — pelo mundo.
A suposta vitória eleitoral e a efetiva derrota social de Evo Morales mostraram mais uma vez que as renovadas fórmulas populistas-caudilhistas latino-americanas no séc. XXI levam sempre ao mesmo fim negativo para os trabalhadores.
O mesmo se dá com a política encaminhada por Lula agora livre: insistência na política petista pós-Dilma, que combina conservadorismo nostálgico (com a impossível volta ao tempo em que “éramos felizes” junto com banqueiros e empreiteiras) e fraseologia de esquerda (para enganar novos e antigos simpatizantes).
As derrotas de Corbyn na Grã-Bretanha e da Frente Ampla no Uruguai expressam uma igualdade de resultados, ainda que por caminhos diferentes. O caso uruguaio mostra o cansaço das massas populares com os governos de plantão, sejam eles quais forem — o desgaste inevitável de anos de conciliação de classe irremediavelmente produz derrotas eleitorais (o que se deu com o PT depois de sucessivas vitórias). Talvez alguém pudesse ainda levantar o dedo para advogar a tese da onda conservadora na América Latina e no mundo, mas como insistir neste clichê contemporâneo diante do caráter global dos levantes populares contra os governos, no Chile, Equador, Colômbia, Haiti, Catalunha, Argélia, Sudão, Líbano, Hong-Kong?
Já o caso britânico chega a ser inusitado: Corbyn, mesmo com um programa mais à esquerda no plano social (devidamente copiado à direita pelo neopopulista Boris Johnson), foi fragorosamente derrotado por tergiversar na obediência à vontade popular (ainda que talvez equivocada) expressa no plebiscito sobre o Brexit. Novamente a esquerda reformista ficou a defender o status quo burguês, negando diálogo com as massas fartas do capitalismo desde a crise de 2008 e deixando livre o caminho para os reacionários capturarem e distorcerem a indignação popular. Nada de bom se poderia esperar dos trabalhistas ingleses, cujo partido, ainda mais ultrapassado que o PT, possui longa trajetória reformista e imperialista.
Pressionada pelo lulismo e provocada pelo bolsonarismo, no clima histriônico tão comum às redes sociais, parte da esquerda busca bússolas as mais diversas para se guiar na turbulenta conjuntura que vivemos. Tal qual os incels (celibatários involuntários) da extrema direita (com seus impossíveis “anarco-capitalismo”, libertarianismo, terraplanismo, etc), jovens e velhos de segmentos sociais intelectualizados procuram uma ideologia (desde o novo culto a Lula até o velho culto a Stalin) ou estilo de vida (modismos mais ou menos interessantes das culturas pop, esportiva ou esotérica) para chamar de seu, como uma marca de distinção.
A desesperança inerente a estes engajamentos é uma resposta ao fracasso do liberalismo e da social-democracia no centro e na periferia da ordem mundial. O retorno de um stalinismo pop é a face autoritária da moeda paternalista cujo lado conciliador é o lulismo. Em ambos os casos, condizente com o espírito de nossa época, imagina-se responder com contundência ao apelo popular de identificações nacionalistas e “tribalizantes” (bolsonarismo, trumpismo, racismo, machismo, etc). “Se não vai por bem, vai por mal”, supõe-se ingenuamente. Mas o que predomina é o lamento pela ilusória possibilidade de modernização capitalista e democrática no Brasil — de resto, inviável em nossas terras.
Sobre o stalinismo em si, notório retrocesso ideológico, não há nada o que dizer de novo. Os neostalinistas apenas repetem, sem saber, os termos do debate já colocados por Antonio Roberto Bertelli e Paulo Silveira na transição dos anos 1970 para os 80 (1). A poderosa crítica ao stalinismo pela tradição trotskysta é consolidada entre nós e pode ser relida; e a radical crítica da esquerda heterodoxa a ele deve ser acessada neste momento tão oportuno. De qualquer forma, Stalin é retomado pelos que concebem o socialismo apenas como capitalismo de Estado — o que não deixa de ser sintomático de um período de colonização do marxismo brasileiro pelo lulismo.
Por outro lado, a militância de esquerda, neostalinista ou não, é capaz de colocar mãos à obra e conseguir formalizar a criação de um novo partido, a Unidade Popular. Inadvertidamente, se evidencia mais uma vez o quão falsa é a tese do fascismo no Brasil: que raio de ditadura bolsonarista é esta em que estamos, onde é possível coletar publicamente mais de um milhão de assinaturas, devidamente reconhecidas pelo TSE?
Fora do mundo das ideias especulativas, na realidade crua e nua, o desgoverno Bolsonaro segue tresloucado sob a tutela do Congresso Nacional e do STF.
O plano de insegurança pública de Sergio Moro foi atenuado e desfigurado por Rodrigo Maia e Marcelo Freixo, mas continuou punitivista e genocida. Outra evidência de que as políticas bolsonaristas não são majoritárias na burguesia brasileira.
Na mesma direção pode-se analisar o asqueroso episódio do ataque da PM à juventude negra e favelada num baile funk em Paraisópolis. Moro rapidamente criticou Dória pela atuação policial. Não hesitou em sacrificar os “policiais que defendem com sua vida as pessoas de bem” para agradar Bolsonaro em sua briga com o governador paulista. Dória, por sua vez, rapidamente mudou de posição e criticou a operação assassina, recebendo até os mobilizados familiares das vítimas (emulando, assim, o marketing político de Cabral no Rio de Janeiro, poucos anos atrás).
Quando o conflito é interno à extrema-direita, ocasião em que o inimigo atua na mesma faixa político-ideológica, vale até apelar aos direitos humanos dos pobres! É possível que a necropolítica esteja deixando de ser propaganda explícita, continuando a ser o que sempre foi no Brasil: realidade dura e de longas raízes históricas nacionais, seja sob o conservadorismo, seja sob o progressismo.
E deste lado lulista de nossa política, os ataques contra os trabalhadores prosseguem. Como a esquerda do PSOL e o PSTU previram, reformas da previdência ao estilo bolsonarista foram aprovadas por governos estaduais do PT, PCdoB e outros partidos progressistas de oposição ao governo federal. Nem assim a direita do PSOL — vulgo “Aliança” — deixa de buscar acordos eleitoreiros com o lulismo (repudiados pelo povo, como mostram recentes pesquisas eleitorais), embora desta forma tenham se desmoralizado ainda mais.
O lulismo, no PT ou no PSOL, continua preservando a extrema direita ao evitar chamar a consigna Fora Bolsonaro junto à população. Nada mais do que o esperado: o discurso antifascista contra o bolsonarismo é inversamente proporcional a uma prática efetivamente mobilizadora contra o governo federal.
Essa esquerda da ordem apenas espera as eleições em 2020. Mas semeará mais vitórias para Bolsonaro. Somente a indignação popular contra a crise e a espontaneidade das ruas, apoiadas pela esquerda socialista, podem nos trazer vitórias imediatas.
1 — Bertelli em sua apresentação (1978) da versão brasileira, pela editora Global, do livro “Materialismo dialético e materialismo histórico”, do próprio Stalin. Silveira em sua introdução (1984) a “Poulantzas” da Coleção Grandes Cientistas Sociais, da editora Ática.