Hoje, no Brasil, se trata de um Estado autocrático-burguês cuja institucionalidade politica sofre um processo acelerado de recomposição em favor do reforço e ampliação de seus elementos autoritários e fascistas e em detrimento de seus elementos democrático-representativos, configurando o que podemos caracterizar como uma “transição autoritária”. Há manifestações deste processo já a partir de 2011, quando se dá o aumento da repressão e da criminalização jurídica sobre as lutas e movimentos sociais, intensificadas com as Jornadas de Junho, de 2013, e os protestos contra a Copa do Mundo, em 2014. O processo continua, com a partidarização cada vez maior do aparelho judiciário em favor das forças políticas conservadoras, no julgamento do “Mensalão” e na Operação Lava Jato; com a volta das forças de direita às ruas, como não se via há 50 anos; com a adesão do governo petista ao neoliberalismo extremado, no segundo mandato de Dilma; e com a lei antiterrorismo. Porém, a dinâmica autoritária ganha novo ritmo a partir do golpe de 2016. De lá pra cá, medidas como o reforço da tutela militar sobre o governo, os ataques aos direitos sociais e trabalhistas (reforma trabalhista, lei de terceirização, reforma da previdência) e à própria capacidade do Estado de executar políticas econômicas anticíclicas e garantir direitos sociais (lei do teto de gastos), a nova lei eleitoral (que escamoteia o financiamento eleitoral pelas empresas por meio das doações individuais), a manipulação política e eleitoral da Lava Jato, o avanço mobilizatório da extrema-direita, a fraude eleitoral de 2018, a aplicação de uma versão ainda mais extremada do neoliberalismo, entre outras, demonstram que há um avanço acelerado das perspectivas autoritária e fascista.
A primeira perspectiva se apresenta no reforço do despotismo do capital sobre o trabalho, por meio da redução drástica dos controles políticos sobre a movimentação do capital e da imposição do mercado como mediador exclusivo das relações sociais. A segunda, na eliminação progressiva do espaço político da esquerda e das organizações vinculadas ao mundo do trabalho, além do uso e abuso da violência policial como mecanismo de controle social, o que implica uma repressão cada vez mais abrangente e que expressa o tratamento manu militari do conflito político e social. Neste sentido, o que restou do regime democrático-representativo e do sistema de representação politica configura uma “democracia restrita”, que deixou pra trás a “democracia de cooptação”, criada, a partir da crise da Ditadura Militar, pela transição democrática, e que tinha o transformismo como método principal de tratamento do conflito político e social.
O governo Bolsonaro é o resultado direto destas mudanças político-institucionais. Sem elas sua “vitória” nas eleições de 2018 não seria possível, nem a conjunção de forças políticas e sociais que o compõem, menos ainda o desembaraço com que aprofunda a aplicação da plataforma neoliberal extremada e avança sua influência na sociedade política. Por isto, trata-se de um governo de extrema-direita liderado por um fascista que, após 10 meses de mandato, tem conseguido unificar os “partidos” que o compõem em torno de si, solidificando seu apoio ou, no mínimo, garantindo sua heteronomia.
Apesar das dificuldades do governo com a articulação politica no Congresso e da queda de braço com o “Centrão”, o “partido financeiro” conduz a política econômica sem grandes questionamentos e aprova sua plataforma com relativa tranqüilidade. O “partido militar” prefere se esconder por trás da legitimidade eleitoral e institucional de Bolsonaro para ocupar cargos estratégicos na máquina federal (como não se via desde a Ditadura Militar), garantir privilégios corporativos para as Forças Armadas e encaminhar projetos de seu interesse nas questões agrária, ambiental e educacional. Uma saída cesarista militar com Mourão no comando não está de todo descartada, particularmente por conta da impopularidade crescente do presidente e das sucessivas denúncias de irregularidades e práticas criminosas envolvendo o clã Bolsonaro, mas devido aos seus altos riscos políticos não se configura como a alternativa prioritária para os militares. Já o “partido do Judiciário” e o “lavajatismo” se vêem cada dia mais prisioneiros da proteção presidencial, forçados a aceitar uma posição subordinada no interior do governo, mesmo diante das práticas que evidenciam os vínculos do clã Bolsonaro com a “velha politica” e as milícias do Rio. As revelações da “Vaza Jato”, do site The Intercept, expuseram à luz do dia a partidarização do aparelho judiciário e os crimes da Operação Lava Jato, limitando Moro e sua equipe a pequenas escaramuças para salvar as aparências, diante do avanço do bolsonarismo em seus redutos. O “partido fisiológico” (composto por “olavistas”, bolsonaristas de última hora, neopentecostais, representantes da bancada BBB e oportunistas em geral) “nada de braçada”, influenciando as políticas de governo nas áreas de educação, cultura, política externa, agricultura, meio ambiente e direitos humanos, ocupando cargos, acessando verbas públicas e privilégios.
Justamente por conta das condições favoráveis criadas pelo golpe e pela Lava Jato à sua ascensão ao governo, mas também por conta de sua própria insignificância politica ao longo dos anos, Bolsonaro nunca organizou e nem precisou organizar um movimento orgânico em torno de suas idéias. Baseado no voto de militares, policiais e suas famílias, Bolsonaro fez sua carreira parlamentar como representante de seus interesses corporativos. Nas eleições de 2018, conquistou o voto de uma base social significativa, com penetração em várias classes sociais, mas que ainda não se constituiu como um movimento orgânico de massas, não indo muito além de uma corrente eleitoral e de opinião, apesar do forte ativismo ideológico nas redes sociais. Porém, a situação tem mudado com certa rapidez, e Bolsonaro vê condições para dar este passo à frente, ao mesmo tempo necessário para fortalecê-lo politicamente.
Apesar de estar obtendo êxito em unificar o governo em torno da sua liderança, Bolsonaro tem sofrido um processo muito acelerado de desgaste junto à opinião publica e mesmo junto ao seu eleitorado, o que tem diminuído seus índices de popularidade com muita rapidez. A crise econômica, o fisiologismo, os vínculos familiares com as milícias, a evidente inépcia para o exercício do cargo, as trapalhadas diplomáticas, o servilismo diante de Trump, a postura omissa em relação a uma série de questões sensíveis, os ziguezagues em diversas decisões etc. fazem com que seu capital político sofra um derretimento acelerado. Além disso, no interior do campo golpista, o bolsonarismo convive com a “concorrência” exercida pelo “Centrão”, com apoio de setores do Judiciário, da grande mídia e de movimentos de direita, na disputa pela direção politica do bloco no poder, o que tem causado problemas a Bolsonaro mesmo no interior de seu partido. Por fim, a oposição de esquerda, incluídos partidos, sindicatos e movimentos sociais, não tem tido capacidade de barrar a aplicação das pautas econômicas, políticas e culturais do governo e, menos ainda, de reverter o processo de “transição autoritária”, exigindo a revogação de todas as medidas aprovadas desde o golpe e a ascensão do governo ilegítimo de Temer, a anulação das eleições de 2018, a destituição do governo Bolsonaro, a convocação de novas eleições, a revisão dos processos e sentenças da Lava Jato, a libertação de todos os prisioneiros políticos. Ao contrário, seus setores dirigentes apostam numa linha de acomodação com a situação politica e econômica vigente, com a esperança de assim preservar o espaço político que ainda tem e garantir seu retorno ao poder pela via eleitoral.
Diante desta situação de desgaste e, ao mesmo tempo, de equilíbrio instável em que nenhuma das forças políticas consegue se impor claramente, Bolsonaro busca se fortalecer ocupando posições no interior do Estado, não apenas no governo, mas em determinados ramos da burocracia não-eleita, indicando bolsonaristas ou adesistas para cargos em diversos órgãos (PGR, PF, Receita Federal, IBAMA, ICMBio, INCRA, juízes). Tenta também criar um movimento bolsonarista, com inserção na sociedade politica e na sociedade civil, estimulando e buscando dar garantias legais ao ativismo repressivo de forças estatais (Forças Armadas e Polícias Militares) e paraestatais (fazendeiros, milicianos, caminhoneiros), forçando a “bolsonarização” do PSL ou a criação de um partido puramente bolsonarista, bem como fortalecendo as redes sociais bolsonaristas e seu ativismo ideológico, com apoio de empresários e o aparelhamento do próprio governo. Segundo denuncia uma ex-aliada, há servidores do próprio Palácio do Planalto dedicados a esta tarefa. Seu êxito nesta iniciativa implica um processo de fascistização da institucionalidade politica, o qual alteraria o regime político em favor dos elementos abertamente fascistas.
No fascismo clássico, a perspectiva de fascistização se apresentava como reação a um ciclo de lutas sociais intensas e revolucionárias, inauguradas pela Revolução de Outubro, que varriam grande parte do globo e apresentavam um horizonte anticapitalista nítido, com organizações capazes de conduzir a luta de classes ao momento político-militar da disputa pelo poder. O que conferiu ao fascismo clássico um caráter claramente contra-revolucionário. Hoje, apesar de intensas, envolventes e cada vez mais freqüentes, as lutas sociais ainda não apresentam uma perspectiva claramente orientada de superação da ordem do capital, limitando-se mais a uma perspectiva antineoliberal e antiautocrática, e nem força organizativa capaz de disputar e tomar o poder de Estado. Porém, nas atuais condições de regressão de direitos, de intensificação da exploração do trabalho e de crise ambiental, o capitalismo se mostra crescentemente incapaz de controlar o conflito político e social, por meio de concessões materiais às classes subalternas e do transformismo sobre as organizações dos trabalhadores. O Estado e a sociedade civil burguesa podem até continuar tentando desorganizar os trabalhadores e impedir seu avanço político, por meio de promessas vazias de crescimento econômico e bem-estar e da mistificação ideológica (empreendedorismo, fundamentalismo religioso, combate à corrupção, etc.), mas se mostram crescentemente incapazes de impedir protestos de massa, a rebeldia e a contra-violência popular, restando-lhe cada vez mais a via da repressão aberta. Este componente estrutural da atual configuração do capitalismo abre caminho para o avanço dos elementos fascistas na composição dos Estados burgueses e mesmo para a fascistização dos regimes políticos.
É nisto que reside a “chance” do bolsonarismo! Ou seja, por mais que certas burguesias, particularmente as frações internas do grande capital e setores do capital imperialista aqui atuante, tenham contradições com o governo Bolsonaro, em termos de politica externa, questão ambiental, financiamento público para obras de infraestrutura etc., não podem derrubá-lo sem colocar em risco o golpe de 2016, sua agenda neoliberal extremada e nem o avanço “autoritário-fascista” já conquistado. Neste sentido, imaginando mantê-lo sob controle e apostando na condução da pauta politica e econômica do golpe pelo “Centrão”, os setores do campo golpista que têm contradições com o bolsonarismo e que poderiam desencadear uma ofensiva pelo impeachment ou renuncia de Bolsonaro (parte do STF, “Centrão”, parte de grande mídia, “lavajatismo”, etc.) contemporizam seguidamente não só com suas idiossincrasias e atos autoritários, mas com suas práticas fisiológicas, evidencias de crimes eleitorais e de envolvimento com as milícias.
Muitos democratas e progressistas defendem a necessidade de um grande acordo contra Bolsonaro, para barrar a escalada fascistizante e a destruição do país, envolvendo as forças de centro do espectro político (de PSDB, MDB, DEM a PT, PDT, PSB e PC do B, além dos sindicatos, da grande mídia, STF etc.). Reféns da nova “chantagem do mal menor”, os partidos de centro-esquerda e as maiores centrais sindicais parecem acreditar nisto, como meio para preservar sua sobrevivência politica e inserção institucional. No entanto, para a centro-direita e o conjunto do campo golpista, qualquer “pacto” neste sentido é condicionado pelo compromisso com a manutenção do golpe e de sua pauta econômica e politica e só será efetivamente consumado como instrumento de contenção das lutas sociais contra o governo. Ou seja, qualquer pacto político com o campo golpista em torno do “Fora Bolsonaro” implica a “normalização” do golpe e a consumação da democracia restrita e do neoliberalismo extremado.
Apesar do torpor demonstrado pela oposição de centro-esquerda e pelas centrais sindicais diante da aprovação da reforma da previdência e do enorme peso do institucionalismo em sua orientação estratégica, é de se esperar um acirramento das lutas sociais no próximo período, por conta das próximas medidas antinacionais e antipopulares, encaminhadas pelo governo ao Congresso, e do próprio agravamento das já péssimas condições sociais dos milhões de trabalhadores do país. O governo sabe disso e considera que o vento da insurreição popular — que vem dando volta ao mundo, particularmente na América Latina — pode soprar aqui também e já se antecipa a esta possibilidade, monitorando lideranças, partidos e movimentos e afiando as garras da repressão. Vê nisso também uma oportunidade para acelerar o processo de fascistização. Se no médio prazo o fascismo consegue se estabilizar no poder e evitar uma crise revolucionária é outra história, pois seus riscos políticos são ainda maiores que os de um cesarismo militar. No entanto, para derrotar esta alternativa antes que seja tarde, os trabalhadores e suas organizações não podem alimentar qualquer ilusão com o campo golpista, e nem com o institucionalismo do centro-esquerda. Têm de derrotar Bolsonaro e todas as variantes do golpe, fazendo valer sua força politica, nas ruas e locais de trabalho, estudo e moradia, e retomando/aprofundando o ciclo de lutas iniciado em 2013. A “hora da verdade” se aproxima!