1. O levante das massas trabalhadoras contra o neoliberalismo e a autocracia burguesa em diversos países da América Latina, principalmente na América do Sul (Honduras, Nicarágua, Haiti, Peru, Equador, Chile, derrota de Macri na Argentina, resistência contra o golpe na Bolívia e greve geral na Colômbia), acendeu o sinal de alerta entre as burguesias para a possibilidade de “contaminação” do Brasil. Isto porque, apesar das particularidades de cada país, os cenários contra os quais se levantam as massas latino-americanas são semelhantes ao que está em curso no Brasil: a) Economias financeirizadas e altamente especializadas na produção de commodities mediante superexploração da classe trabalhadora; ii. Polarização política e social em decorrência das múltiplas formas de expropriação (de propriedade, trabalho, renda, educação, cultura e representação política) dos trabalhadores e demais camadas populares; c) Regimes autocrático-burgueses com sistemas de representação política cada vez mais restritos e hostis à participação dos trabalhadores e às demandas populares por direitos e; d) Estrutura ideológica crescentemente marcada por preceitos meritocráticos, fundamentalistas cristãos e “eugenistas”. Se de um lado o clã Bolsonaro e setores do governo reagiram ameaçando com o fechamento ainda maior do regime político; de outro lado, forças políticas e sociais ligadas ao centro-direita reagiram de forma mais sofisticada, tentando criar contrapesos ao avanço do cesarismo bolsonarista e sua perspectiva de fascistização. Apesar de concordarem com a pauta neoliberal extremada do Ministério da Economia, o centro-direita busca se fortalecer no interior do campo golpista como uma alternativa capaz de “normalizar” o golpe de 2016 e “pacificar” o país.
2. Além das revelações que indicam o envolvimento do presidente com os assassinos de Marielle Franco, o fato mais marcante da atual conjuntura é a libertação de Lula. A decisão do STF de simplesmente seguir a lei e respeitar a norma constitucional sob a qual não paira qualquer dúvida não apenas permitiu a soltura do ex-presidente, mas também revela a movimentação política de setores do campo golpista e do bloco no poder, com consequências importantes na definição da estratégia da oposição de esquerda, particularmente do centro-esquerda (PT, PDT, PSB, PC do B, Rede).
3. Como vimos anteriormente, aproveitando-se da situação de equilíbrio instável entre as forças políticas e da unificação relativa dos “partidos” do governo em torno de sua liderança e do programa neoliberal de Guedes, mas também reagindo à queda contínua de sua popularidade, Bolsonaro avança seu projeto de fascistização do aparelho de Estado e da ordem política, buscando não apenas mobilizar a base social bolsonarista, mas indicar adeptos nas diversas instâncias burocráticas do aparelho de Estado e constituir um partido fascista. A permissão para as igrejas evangélicas financiarem eventos com recursos da Lei Rouanet, a saída do PSL e o anúncio da criação de seu novo partido, Aliança pelo Brasil, evidenciam esta iniciativa. Como esperado, o programa do partido apresenta uma miscelânea própria do fascismo contemporâneo: fundamentalismo cristão (“respeito à Deus, à religião”, “defesa da vida, da família e da infância”); racismo, travestido de nacionalismo cultural e patriotismo (“respeito à memória, à identidade e à cultura do povo brasileiro”, sendo o tal povo brasileiro identificado apenas com a tradição judaico-cristã, com a herança ibérica e a civilização ocidental); antisocialismo/anticomunismo (dos quais o Brasil ficou livre em 2016!), antiglobalismo, “anti-nazifascismo” (afinal, o fascismo é de esquerda, não é mesmo!); autoritarismo e cesarismo (“defesa da ordem, da representação política e da segurança, onde a defesa da representação política significa o combate ao “ativismo judicial”, que atrapalha a vida da presidência com o respeito à Constituição, à lei, etc., e a defesa da segurança implica na liberação do uso de armas e na licença para matar aos agentes da repressão); neoliberalismo extremado (“defesa do livre mercado, da propriedade privada e do trabalho”, sendo este entendido como empreendedorismo). O programa ainda propõe a criação de uma espécie de “Internacional Fascista”, com o estabelecimento de relações com partidos e entidades conservadoras de outros países.
4. Paralelamente, o governo avança em seu projeto de fascistização, numa contra-revolução preventiva diante da possibilidade da população em geral, dos movimentos sociais e da oposição de esquerda seguirem o exemplo que vem do Equador, do Chile e da Bolívia. Nesta perspectiva, o governo propõe o fechamento ainda maior do regime político apresentando um conjunto de leis repressivas que ampliam o elenco de situações puníveis com a lei antiterrorismo (PL’s 1.595, 5.327 e 443), permitem o monitoramento das redes sociais pelo aparelho de informações (PL’s 2.418 e 3.389) e a troca de informações sobre os cidadãos entre os diversos órgãos da administração pública (decretos 10.046 e 10.047). Sem falar na elaboração de uma “lista” com nomes de pesquisadores que estudam a Ditadura Militar para fins de perseguição em termos de financiamento de pesquisas e bolsas e promoção profissional e na pretensão presidencial de transferir o combate às ocupações de terra para as Forças Armadas, substituindo as polícias estaduais.
5. Enquanto isto, o governo tem encaminhado celeremente o programa neoliberal extremado de Guedes, com a aprovação da reforma da previdência, inclusive em estados e municípios; a apresentação de um projeto de reforma administrativa que reduz os gastos obrigatórios com saúde e educação e flexibiliza os direitos dos servidores, com a eliminação da estabilidade, a possibilidade de redução salarial, a suspensão de novos concursos e a contratação de servidores temporários. Além disso, propõe flexibilizar as regras para a privatização de estatais, pressionar os estados a adotar políticas de ajuste fiscal por meio da criação de um novo pacto federativo, eliminar fundos voltados para gastos sociais, reduzir ainda mais os direitos trabalhistas para jovens trabalhadores por meio da carteira de trabalho “verde e amarela”, isentar os empregadores de diversos encargos sociais e trabalhistas e promover uma reforma que torne o sistema tributário ainda mais regressivo que o atual.
6. Apesar do sucesso na aplicação do programa neoliberal extremado de Guedes o governo Bolsonaro convive com índices decrescentes de popularidade, uma recessão econômica renitente, apesar de pequenas variações para cima nos índices de atividade econômica e queda do desemprego que não chegam a configurar uma retomada econômica, mas que são comemoradas efusivamente pelo “mercado” e pela grande mídia; uma crise na sua própria base política (dissensões com Frota, Hasselmann, Witzel e o próprio PSL) e uma crise ambiental de enormes proporções (o vazamento de petróleo na maior parte do litoral brasileiro), com impacto altamente negativo na economia (pesca, turismo) das regiões atingidas (Norte, Nordeste e parte do Sudeste, por enquanto!). Nesta crise, o “Chernobyl brasileiro”, ficou patente não apenas o descompromisso do governo com o problema ambiental, mas sua inépcia e o despreparo para lidar com o problema por conta do desmonte dos órgãos encarregados de operar o Plano Nacional de Contingência e a tentativa farsesca de ideologizar o episódio acusando a Venezuela pelo acidente. Há fortes indícios de que o vazamento ocorreu na extração do óleo das reservas brasileiras do Pré-Sal, mas o governo preferiu esconder a informação e acusar os navios que transitam pela costa brasileira. Além disso, as novas revelações sobre o assassinato de Marielle Franco reforçaram os indícios de envolvimento do presidente e seus filhos com os assassinos, amplificando sua deslegitimação junto a setores cada vez maiores da população e recolocando a questão de seu impeachment ou renúncia. O clã Bolsonaro reagiu afrontando ainda mais a legalidade democrática — ameaçando a imprensa, suprimindo e alterando provas e acusando o porteiro de “mentir” — com o intuito de “abafar” o caso e com o aval do Ministério da Justiça, da PGR e do MP do Rio de Janeiro. A contínua instabilização do cenário político pelo próprio governo e seus aliados foi vista como uma das causas do fracasso do leilão da cessão onerosa do Pré-Sal, levantando mais uma vez a tese de que o presidente e sua família são um “estorvo” para a aplicação do programa neoliberal extremado na rapidez e na profundidade desejada pelo capital. Nos setores da grande mídia vinculados ao centro-direita avança o discurso de que a crise econômica está sendo superada e de que Guedes está no bom caminho, o que atrapalha é Bolsonaro (e Weintraub, Damares, Araújo et caterva), reverberando o desejo do conjunto das frações burguesas pela estabilidade política e a normalização do Golpe de Estado de 2016. Mesmo assim, no momento em que escrevemos o real sofre um ataque especulativo de consequências imprevisíveis por conta das declarações de Guedes contra o controle do câmbio e em defesa de um novo AI-5.
7. Por outro lado, em reação às revelações do site The Intercept, à postura abertamente crítica de setores do STF, à anulação de sentenças pela Justiça e à pressão de diversos atores do mundo jurídico pela punição de Moro, Dallagnol e os procuradores da “República de Curitiba”, a Lava Jato ameaça envolver o sistema financeiro nas investigações sobre corrupção, atingindo a fração hegemônica do bloco no poder.
8. Neste cenário a libertação de Lula passou a ser do interesse de setores sociais e políticos que deram o golpe de 2016 e apoiaram sua continuação com a prisão do ex-presidente em 2018, numa tentativa de canalização da rebeldia social para a luta institucional e o calendário eleitoral. Isto explica a mudança de posição do STF, o silêncio dos militares, tão falantes em episódios anteriores como o julgamento do habeas corpus de Lula, a cobertura “amigável” de determinados órgãos da grande mídia e o “banho de água fria” de Rodrigo Maia nas pretensões dos deputados que pretendem ressuscitar a prisão em segunda instância por meio de uma emenda constitucional afirmando que há coisas mais importantes para tratar na Câmara dos Deputados e “empurrando com a barriga” sua tramitação. Para o centro-direita a libertação de Lula não apenas impõe uma derrota importante para a Lava Jato e o “partido do Judiciário” no governo, mas cria um cenário de polarização entre o lulismo e o bolsonarismo que pode abrir espaço para uma candidatura competitiva em nome da “pacificação” que atraia até mesmo setores do centro-esquerda, abrindo caminho para composições de variados tipos com as forças golpistas regionais. Já há um acordo entre PDT, PSB e Rede para caminharem juntos nas próximas eleições municipais e conversações deste campo com o DEM. Mesmo para Bolsonaro a libertação de Lula pode ser positiva, pois reabilita o fantasma da “volta do PT” entre seus eleitores, criando um mote para mobilizar sua base social, e justificar o fechamento do regime, sob a alegação farsesca de que Lula incendiará as ruas!
9. Porém, o principal efeito político da libertação de Lula é a possibilidade do PT exercer uma postura ainda mais moderada diante da aplicação da agenda neoliberal extremada, conduzindo o descontentamento popular para o campo da luta institucional e eleitoral, passivizando as lutas sociais, freando o movimento de massas e legitimando o golpe. O próprio Lula indica que assumirá este papel quando logo após sair da prisão critica duramente a Lava Jato, Moro, a Rede Globo, o governo e a política econômica de Guedes, mas ao mesmo tempo descarta o “Fora Bolsonaro”, como também descartou o “Fora Temer”, adiando para as eleições de 2022 o acerto de contas com o governo. Além disso, afirma que conversará com todas as forças de oposição, inclusive o MDB, percorrerá o Brasil preparando o PT para as eleições de 2020 e que este tem todo o direito de encabeçar as chapas eleitorais por ser o maior partido do país. A permanência de Gleisi Hoffmann na presidência do partido garante o controle de Lula e de sua agenda política sobre o PT. Esta postura não apenas abre mão de derrotar o golpe e sua pauta política e econômica, mas o legitima, na medida em que “normaliza” nos marcos da luta institucional uma situação política claramente excepcional e desarma o movimento dos trabalhadores para resistir ao projeto fascista de Bolsonaro. Não é ocioso lembrar que nos últimos tempos, todas as vezes em que Lula e o PT apostaram na institucionalidade e na força das “instituições democráticas” foram fragorosamente derrotados, como em 2016 com o “Não vai ter golpe” e o abandono da resistência ao impeachment; em 2017, desautorizando o “Fora Temer”; e em 2018, quando se entregou aos carcereiros da Lava Jato e apostou até o fim na validação de sua candidatura. Além disso, torna a criação de uma frente ampla entre as forças antigolpistas ainda mais difícil, abrindo caminho para composições de variados tipos com as forças golpistas. No entanto, esta estratégia política de Lula e dos setores hegemônicos do PT tem atraído forças que integram o campo da esquerda socialista. A título de exemplo, amplos setores do PSOL parecem dispostos a compor alianças eleitorais com o PT e a orbitar em torno do lulismo, o que objetivamente impede a constituição de uma frente de esquerda que reúna as forças que integram o campo da esquerda socialista. Desse processo emergiu a proposição da seguinte bandeira de luta: “Lula e os movimentos sociais nas ruas para derrotar Bolsonaro!”.
10. A atual conjuntura demanda a retomada das mobilizações de massas nas ruas, mas não sob a lógica lulo-petista e com setores da própria esquerda socialista dispostos a orbitá-la. É preciso fortalecer as frentes políticas que reúnam entidades e movimentos sindicais, populares e estudantis que tenham a disposição a priorizar as lutas de massas em lugar da luta meramente institucional; conduzir as lutas de resistências contra o capital como parte do movimento mais geral que tem em vista a conquista da iniciativa política pelos trabalhadores, isto é fazer as forças sociais e políticas do capital recuar frente à ascensão das lutas de massas dos trabalhadores; buscar a organização permanente pela base; orientar politicamente os trabalhadores com independência de classe; conscientizar a classe trabalhadora quanto à necessidade de um programa anticapitalista, antiimperialista e apoiado na defesa do Poder Popular. Mais do que nunca, no Brasil e no Mundo, faz-se necessário acumular na direção da ofensiva contra-hegemônica em defesa dos ideais socialistas.