novembro último Bolsonaro lançou o seu novo partido, Aliança pelo Brasil. Criado para abrigar não apenas os parlamentares do PSL rompidos com a direção de Luciano Bivar e seus aliados, o novo partido pretende atrair e abrigar o conjunto de adeptos de Bolsonaro espalhados por outros partidos, pelas variadas instâncias do aparelho de Estado, por igrejas, entidades patronais, movimentos da nova direita, além de grupos fascistas de perfis variados. O elemento galvanizador desta miríade de figuras do mundo escatológico da extrema-direita é a fidelidade à Bolsonaro e o apoio ao seu governo. No entanto, para além das aparências — alimentadas pelos próprios bolsonaristas de que se trata de um partido “conservador nos costumes” e “liberal na economia” criado com a intenção de “salvar” o “capitão” da esquerda e da “velha política”, que o “impedem” de governar e restaurar o paraíso perdido, conforme afirmam quando confrontados com o péssimo desempenho do governo; o que há por trás do novo partido é um programa francamente fascista. Que combina os elementos essenciais do fascismo clássico atualizados e adaptados às novas configurações do capitalismo e da dominação burguesa. O conteúdo fascista do programa se revela tanto no plano ideológico-propagandístico, quanto no plano político-prático.
Assim, o novo partido faz parte da família de partidos de extrema-direita historicamente constituídos no país depois da derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial, como o antigo PRP (1945–65), de Plínio Salgado, o já extinto PRONA (1989–2006), de Enéias Carneiro ou o atual PRTB (1994), de Levy Fidelix. Porém, mesmo não estando ainda formalmente legalizado, o Aliança pelo Brasil se diferencia de todos eles, pois já ocupa não apenas a presidência da República, parte do governo e instâncias importantes da sociedade política (parlamentares, governadores de estado, setores da burocracia não-eleita como militares, policiais, juízes, procuradores, gestores, etc.), mas também aparelhos importantes da sociedade civil (igrejas, setores da grande mídia, entidades corporativas, entidades político-culturais, grupos paramilitares, etc.), o que lhe confere força política e capacidade operativa como nenhum outro em momento algum. Além disso, o novo partido se beneficia de uma situação de crise de hegemonia que favorece o avanço da perspectiva fascista como instrumento de manutenção da ordem pelo bloco no poder; o que nos obriga a considerar seriamente suas possibilidades de êxito e compreender o conteúdo fascista de seu programa.
O programa começa recorrendo a procedimentos propagandísticos típicos do fascismo, quais sejam a inversão da verdade histórica e a elaboração de uma versão mítica das origens do movimento, como expressão de uma genuína reação popular à tirania e à desordem. A constituição do partido é apresentada como o ápice de uma trajetória de reação e luta da população brasileira contra o “socialismo” e a corrupção, que começa na derrota do governo Lula no plebiscito do desarmamento em 2005, que cassava “o direito à legítima defesa” [1]; continua com as manifestações de 2013, 2014 e 2015 contra o governo Dilma Roussef, “quando o povo brasileiro disse ‘não’ ao ‘donos do poder’”; avança em 2016, quando começa a “expulsão do socialismo do poder” e a “contenção do projeto totalitário encampado pelo Foro de São Paulo”; se consolida em 2018, quando “o povo deu o norte da nova representação política que buscou ao sair às ruas” e que agora, em 2019, exige a “criação de um partido político que dê voz ao povo brasileiro”. Esta narrativa busca legitimar o novo partido associando-o à retomada das ruas pela oposição de direita aos governos do PT a partir da crise do “Mensalão”, apresentando-o como estuário destas lutas e como seu desdobramento necessário em termos organizativos, sem citar a participação de outras organizações e partidos de direita neste processo e nem reconhecer o fato de que diversas dessas manifestações, particularmente em 2013, tinham um conteúdo claramente de esquerda, antineoliberal e pró-democrático. Da crise do “Mensalão” ao governo Bolsonaro há um movimento contínuo em que o povo “acorda” de seu torpor e se mobiliza para ter as rédeas do país nas mãos. Nesta narrativa, típica do fascismo, apenas o Aliança pelo Brasil detém a representação política do ”povo” rebelado, por isto, só ele fala por todo o povo, só ele é capaz de atender suas demandas.
A partir disto o programa apresenta os pontos principais de sua pauta, e não à toa começa pelas questões religiosa e cultural, temas que aparentam uma perspectiva “universal”, capaz de atrair a adesão de variados grupos sociais; mas que na verdade revelam um conteúdo tradicionalista e conservador, e, por isto, discricionário e excludente em relação aos “desviantes”. O primeiro tópico, “Respeito a Deus e à religião”, apresenta um viés fundamentalista cristão, de perfil neopentecostal, mas que também contempla os setores carismáticos do catolicismo, na medida em que atribui ao cristianismo e à religiosidade um papel estruturante no processo de formação da sociedade brasileira, desconsiderando as outras contribuições culturais e religiosas. Nesta leitura o “povo brasileiro” é fundamentalmente cristão e tem na religião uma de suas características definidoras. Daí que o partido “compromete-se a defender a liberdade de expressão religiosa, resguardada a justa ordem pública, e a combater qualquer forma de discriminação, hostilidade e menosprezo à religião, especialmente na vida pública”. Ou seja, as outras religiões e credos podem se expressar livremente desde que não firam “a justa ordem pública” — certamente conforme o devido entendimento da autoridade policial ou judiciária de plantão; enquanto os agentes públicos não podem agir republicanamente, pois aplicar a lei contra alguma denominação cristã; tratá-las como qualquer outra entidade civil ou mesmo defender o ensino laico implica em “discriminação, hostilidade e menosprezo à religião”.
A subordinação da vida pública à esfera religiosa não fica só nisso, pois o programa avança uma perspectiva teocrática, quando afirma que “jamais a laicidade do Estado significou ateísmo obrigatório — como ocorre nos regimes totalitários que perseguem a religião. A laicidade não revoga a História da formação de um povo, nem se confunde com ódio à religião”. Para adiante propor: “reconhecendo a justa autonomia da ordem política e da ordem religiosa, que a precede, o partido propõe o desenvolvimento de uma sadia cooperação entre essas duas esferas, para o bem comum, mesmo porque o povo é majoritariamente religioso e não pratica exclusão de Deus de suas vidas — logo, não devem fazê-lo seus representantes”. Não foi à toa que Bolsonaro nomeou um católico conservador para a PGR e prometeu indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF!
É fato que os regimes do fascismo clássico buscaram ganhar o apoio ou manter relações amistosas com as igrejas cristãs, e vice-versa, utilizando elementos cristãos em sua concepção de mundo, como mostram os casos italiano e alemão, porém, de maneira instrumental e subordinada e fundamentalmente como contraponto ao judaísmo. Neste sentido, a perspectiva teocrática apresentada pelo partido de Bolsonaro e por outros movimentos fascistas contemporâneos, denominada por alguns teóricos como “cristofascismo”, é uma reação à luta pela afirmação da identidade, da cultura, da autonomia política e dos direitos por parte dos povos subalternos “internos” (povos originários, migrantes e descendentes), “externos” (povos colonizados) e de segmentos marginalizados e oprimidos por conta de sua etnia, gênero, orientação sexual e religião. Se no fascismo clássico o cristianismo servia a um propósito anti-semita, hoje ele serve à islamofobia, ao machismo, à homofobia, às políticas antiimigratórias, à discriminação e perseguição das culturas e religiões de matriz africana, indígena, oriental e outras e da própria perspectiva racionalista defendida pela tradição socialista. Além disso, o recurso ao fundamentalismo cristão como componente programático do partido visa atrair o apoio de evangélicos e carismáticos para a constituição de um movimento fascista de massas, tendo as igrejas cristãs como aparelhos de hegemonia auxiliares.
No ponto seguinte continua a tentativa de mitificação do “povo brasileiro” a partir de uma perspectiva unilateral e hierárquica, quando o programa trata do “Respeito à memória, à identidade e à cultura do povo brasileiro”. De acordo com o programa “a Aliança pelo Brasil prestará plena adesão à herança cultural de nossa Nação e buscará conservar as marcas fundantes da alma brasileira, bases que garantiram a coesão de nosso grande território e a possibilidade de que todos os brasileiros, das mais diversas regiões e de diferentes costumes, pudessem se ver como irmãos de sangue e de pátria: a unidade de tradição, de língua e de cultura”. Ou seja, o processo da colonização portuguesa, de subordinação das populações indígenas, negras e mestiças ao domínio branco e de criação a ferro e fogo da unidade nacional criaram nada menos o que seriam as características ontológicas “da alma brasileira”: sua tradição, sua língua e sua cultura. O programa limita a identidade, a memória, a cultura e a língua do povo brasileiro à herança branca e portuguesa, desprezando o processo secular de mestiçagem e sincretismo cultural que marca a sociedade brasileira. Após considerar que a defesa da cultura, da memória e da identidade nacionais constitui-se num ato patriótico, o programa propõe um processo de “restauração da cultura”, pretensamente atacada pela valorização do multiculturalismo e da alteridade, por meio do “reconhecimento a tudo que de bom herdamos de outras nações, a exemplo das tradições lusitanas e hispânicas, do Direito Romano, da filosofia grega, da moral judaico-cristã, e ainda aquilo que o Brasil pode aprender, no presente, com outros povos, com adaptação à nossa realidade e aos nossos valores — pois, como diz São Paulo: “examinai todas as coisas, ficai com o que é bom (I Tessalonicenses 5,21)”.
Aqui aparece um dos elementos caracterizadores do fascismo aggiornato aos novos tempos, qual seja o racismo cultural. Diante do processo descrito acima de afirmação dos povos subalternos, de avanço da cidadania política e do próprio descrédito das “teorias” racistas o discurso da superioridade de determinadas etnias sobre outras aparece de forma dissimulada por meio da afirmação da cultura dominante (branca e eurocêntrica), tida como a “fundante” ou a única que expressa o verdadeiro espírito do povo, o sentido da nacionalidade e o caráter da pátria. Todas as outras, por mais que sejam majoritárias no interior de suas sociedades, são consideradas exóticas ou inorgânicas. Mais uma vez aparece um elemento fundamental da perspectiva fascista: o princípio antidemocrático e antiuniversalista da hierarquia social.
O “cristofascismo” aparece novamente no ponto seguinte do programa: “Defesa da vida, da legítima defesa, da família e da infância”. Em nome da “defesa da vida” este tópico começa com uma crítica ao aborto, considerado não apenas uma “traição social” dos que nasceram contra os que não tiveram este direito, mas “a destruição de todo o edifício moral e jurídico sustentador do Estado: o assassinato deliberado de uma criança inocente e indefesa é a inversão absoluta da ordem, pois o valor da vida é relativizado e os mais frágeis se tornam os mais violentados, ao invés dos mais protegidos”. Neste diapasão, em nome da defesa da maternidade o programa condena o que chama de “direitos sexuais e reprodutivos”, o que significa condenar o direito dos indivíduos, principalmente as mulheres, de dispor de seu corpo como bem entenderem e quiserem e de assumir livremente sua orientação sexual. Em seguida associa a defesa da vida ao direito “inalienável” ao porte de armas, considerado um “direito natural” da pessoa humana, para “sua defesa e a dos seus, bem como de sua propriedade e de sua liberdade”. Desdobramento necessário desta argumentação fundamentalista cristã, a defesa da família e da infância vem associada ao casamento heterossexual e ao direito dos pais definirem a educação dos filhos a partir de suas “convicções”, podendo, inclusive, educá-los em casa. Tudo isto para combater “a pedofilia e o tráfico de crianças”, “a erotização da infância e a ideologia de gênero”, criminalizando a educação sexual nas escolas e o debate sobre a liberdade de orientação sexual. Aqui se mobiliza a tensão sexual como elemento de propaganda, recorrendo-se ao mito fascista da ameaça permanente à família e aos “cidadãos de bem”, pois todos os outros são “tarados e degenerados”. Ao contrário disto, a educação deve estar voltada para “o desenvolvimento integral do homem, considerando seu progresso moral, cultural e material, com o objetivo de propagar e de difundir a herança cultural brasileira e ocidental”, extirpando “métodos pedagógicos fracassados, dentre os quais o de Paulo Freire”, como se o método freiriano predominasse na escola brasileira. A crítica à Paulo Freire é parte da estratégia de propaganda fascista de desqualificação da racionalidade e do livre pensamento; de desconfiança em relação à própria perspectiva científico-educativa da escola pública, tida como ambiente de doutrinação por parte de criminosos, “esquerdopatas”, antipatrióticos, em favor da própria inversão da verdade pela narrativa fascista. As redes bolsonaristas de fake news prosperam nesse cenário.
O ponto seguinte do programa, “Garantia da ordem, da representação política e da segurança”, revela o núcleo fascista da proposta aliancista, comum a todos os movimentos, partidos, organizações e regimes fascistas de ontem e de hoje: o tratamento manu militari do conflito social e político, a criminalização e eliminação da oposição. Ou seja, a valorização da chamada “anti-política”, ou a negação da política entendida como mediação dos conflitos e a desqualificação dos mecanismos políticos e institucionais que permitem esta mediação em favor da ação redentora do líder supremo; a criminalização dos opositores e adversários e, finalmente, sua eliminação política, quando não física, por meio da repressão judicial e/ou policial (estatal e para-estatal). Historicamente estes elementos se constituíram como parte integrante de todos os Estados burgueses, democráticos ou autocráticos, funcionando em graus variados de intensidade e abrangência e em conformidade com a dinâmica da luta de classes. Porém, nos regimes fascistas eles possuem um papel estruturante em sua organização e funcionamento.
A noção de defesa e garantia da ordem não se limita à ordem política e social, mas também abrange a ordem “moral” e “jurídica”. A ordem moral deve ser garantida “pela conservação dos valores cristãos, da memória e da cultura brasileira, heranças comuns do povo”, conforme proposto no segundo ponto; enquanto a ordem jurídica deve se basear na “segurança jurídica”, na “previsibilidade das ações do Poder Público” para o cidadão, “em especial o cidadão empreendedor, gerador de empregos, e o cidadão pagador de impostos, que carrega o custo do Estado nas costas”. Aqui o discurso apresenta uma perspectiva ético-política claramente direcionada às classes burguesas, particularmente à pequena burguesia e à alta classe média; repetindo a cantilena neoliberal acerca do “custo Brasil” e buscando conferir uma dimensão empresarial à idéia de ordem social.
A noção de ordem e segurança jurídica se amplia com “o combate ao chamado “ativismo judicial”, fenômeno de usurpação do poder legislativo, e de violação à separação dos poderes, por meio do qual é desrespeitada a legítima vontade popular exercitada diretamente ou por meio de seus representantes eleitos, inclusive, através de seus silêncios, quando o povo ou seus representantes decidem não legislar sobre algo ou rejeitar proposta legislativa sobre algum tema. O partido se esforçará, portanto, para combater o “ativismo judicial”, buscando mecanismos de restabelecimento da autoridade dos Poderes usurpados frente a qualquer iniciativa nesse sentido, a exemplo de mecanismos de suspensão de atos judiciais que invadam competências legislativas”. O combate ao “ativismo judicial” se completa com o controle e limitação das ações da burocracia a fim de recuperar o princípio da representatividade política, pois “sem a garantia efetiva e real da representação popular, uma das principais demandas do povo brasileiro desde as manifestações de junho de 2013 não estará sendo atendida. Por esse motivo, colocar os burocratas anônimos e não-eleitos sob o controle popular, através de mecanismos de transparência e de accountability, além da redução de seus poderes (especialmente para questões propriamente legislativas, mais graves e importantes para a vida da população) são medidas de urgência democrática”. O combate ao “ativismo judicial” é uma demanda democrática legítima, na medida em que o poder Judiciário assumiu um protagonismo político indevido nos últimos anos, aproveitando-se da crise do sistema de representação política e constituindo-se como um ator político (o “partido do Judiciário”) a serviço do golpe de 2016, da escalada autoritária em curso no país e de seus interesses corporativos. No entanto, na boca de quem já sugeriu o fechamento do Congresso e do STF e a edição de um novo AI-5 e que persegue/demite servidores públicos conforme sua conveniência ideológica esta posição revela uma perspectiva autocrática e cesarista. Pois em nome de limitar o “ativismo judicial” e a autonomia burocrática o que se pretende é fortalecer a autonomia presidencial por cima da lei e dos outros poderes em nome da representação popular emanada das urnas; numa relação imediata, plebiscitária, entre a massa de eleitores e o “líder supremo” tipicamente fascista. Em outras palavras, o que o documento diz é que a partir de sua vitória eleitoral Bolsonaro recebeu um mandato para governar como bem quiser (afinal, o Johnny Bravo ganhou!), independentemente das restrições e das mediações impostas pela constituição, pela divisão dos poderes e pelo próprio sistema de representação política; e que, em nome disso, pode substituir membros da burocracia não-eleita que não concordam com suas políticas trocando-os por aliados e adeptos. Ou seja, a fascistização do Estado é o objetivo programático contido neste ponto, subordinando as esferas eleita e não-eleita da burocracia a este processo, independentemente da norma republicana e do princípio da impessoalidade burocrática.
Não à toa, a noção de ordem pública e social apresentada pelo programa é exclusivamente assentada na questão da segurança pública e da repressão policial, e as propostas para o tema são centradas na defesa dos interesses corporativos dos agentes do sistema repressivo (militares, policias) e de sua liberdade de ação repressiva perante a lei e os direitos civis e políticos. Daí que “o partido empenhar-se-á pela defesa das forças militares e policiais e buscará meios para garantir-lhes melhores condições de trabalho, de remuneração e de segurança física, financeira e jurídica para si e para suas famílias. O Brasil possui um grande débito com as forças militares e policiais, pessoas que arriscam suas vidas e também a de suas famílias para que todos os outros brasileiros possam ter segurança. O partido se esforçará, dentro de suas possibilidades, para que esse débito seja pago: que os soldados ativos possam exercer com efetividade o seu trabalho (juridicamente assegurados), que os veteranos possam ter tranquilidade na reserva e que aqueles que tombarem na batalha sejam devidamente reconhecidos e honrados”. Em outras palavras, é preciso conferir ao aparato repressivo estatal autonomia institucional para operar conforme as necessidades de salvaguarda da ordem, livre das peias legais e do controle externo. Se acrescentarmos a esta proposta aquela que defende “o direito à legítima defesa” por meio da liberação do porte de armas teremos o arcabouço institucional para a ampliação das forças paramilitares e a ampliação exponencial do aparato repressivo.
Contra o que chama de “ideologia do garantismo” o programa apresenta uma perspectiva punitivista para a questão criminal, propondo-se a priorizar a reparação das vítimas em lugar da recuperação do preso no caso dos crimes comuns. Porém, vai muito além e revela o núcleo duro da perspectiva fascista contida no programa, pois criminaliza abertamente a oposição de esquerda associando-a a corrupção, ao narcotráfico e ao terrorismo. Diz o programa: “Atenção primordial será dada, pelo partido, aos crimes de corrupção, de narcotráfico e de terrorismo, especialmente porque, no Brasil, esses três crimes desenvolveram-se intrinsecamente ligados, seja pelo fato de que a corrupção dos governos socialistas no Brasil sustentou narcoditaduras no exterior, seja porque essas narcoditaduras serviram de caminho para organizações terroristas, seja porque o narcotráfico brasileiro, favorecido pela corrupção, pela revolução cultural e pelo garantismo socialista, adota, ele próprio, feições e métodos do terrorismo”. No afã de eliminar a esquerda do cenário político sua criminalização recua no tempo, quando afirma que o “partido se esforçará para investigar e esclarecer ao povo brasileiro essas relações espúrias e ainda ocultas, em sua maior parte, mas que levaram tantos cidadãos à morte de forma prematura”, numa referência às ações da esquerda armada durante a Ditadura Militar. Numa típica operação ideológica de vitimização do dominante, busca-se inverter as reais relações políticas vigentes na Ditadura Militar, apresentando os perseguidos como algozes e os repressores como vítimas.
Finalmente, a parte econômica. O fascismo sempre foi oportunista em relação às demandas do grande capital, e ainda continua sendo. Se no período do fascismo clássico a perspectiva burguesa predominante era de intervencionismo estatal, nacionalismo econômico e de planejamento para superar a crise de 1929 e viabilizar o esforço de guerra, posteriormente o fascismo abraçou o neoliberalismo sem problemas em muitos lugares, recorrendo a um argumento tipicamente anticomunista, que associa socialismo/comunismo à estatismo, “totalitarismo”, corrupção e ineficiência. No caso específico de Bolsonaro, o aggiornamento ocorreu ao longo de 2018, quando abandonou o discurso desenvolvimentista conservador típico dos militares durante a Ditadura Militar, em favor de uma pauta neoliberal extremada e pró-imperialista para viabilizar o apoio empresarial à sua candidatura. Além disso, há uma espécie de “afinidade eletiva” entre fascismo e neoliberalismo em torno da perspectiva autocrático-burguesa. Pois na medida em que este último propõe a eliminação dos controles políticos sobre a movimentação do capital favorecendo o “livre mercado”, a mercadorização de tudo e a eliminação dos instrumentos de defesa dos direitos dos trabalhadores e demais despossuídos está, na verdade, propondo o aprofundamento da expropriação do trabalho e submissão de toda a vida social ao despotismo do capital. Numa era em que a economia capitalista é dominada por mega-corporações transnacionais e que os direitos civis, políticos e sociais se universalizaram a liberdade de mercado implica em nada menos do que subsumir a política à economia ou, em outras palavras, anular a mediação das demandas políticas e sociais em favor da lógica do valor de troca.
Na ótica do programa aliancista, o que se configura como controles políticos sobre a movimentação do capital é visto como negação do “direito inalienável” à propriedade privada, também tida como direito natural. Por conta disto, o partido reafirma a matriz anticomunista e volta a associar intervenção estatal ao socialismo/comunismo: “a Aliança pelo Brasil repudia o socialismo e o comunismo, em todas as suas vertentes, e se empenhará para que sejam reduzidos e, quando possível eliminados, os controles e as interferências estatais sobre a economia, através de mecanismos burocráticos, tributários ou regulatórios”. Adiante diz: “o partido repudia a luta de classes, geralmente oculta e inoculada sob uma interpretação torpe e falsa da expressão “função social da propriedade”, e as tentativas de coletivização da propriedade, que ignoram o direito natural de cada um ao que é seu”. Para concluir que “o partido é contra qualquer perspectiva de planificação da economia, especialmente através da burocracia, reconhecendo que a liberdade de ação econômica, junto com o direito de escolher, acarreta os riscos e as responsabilidades inerentes a esse direito”. Para garantir a prosperidade “o partido promoverá a proteção da livre iniciativa e do livre exercício da atividade econômica e defenderá o papel fundamental e positivo da empresa, do livre mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade dos meios de produção e da livre criatividade humana no setor da economia. Reconhece, ainda, o lugar das famílias e dos pequenos empreendedores como produtores de riqueza, de acordo com o princípio da subsidiariedade”.
Retomando o princípio fascista de que o trabalho liberta e regenera e aliando-o ao discurso neoliberal do empreendedorismo (positivação ideológica do trabalho precarizado!), o programa afirma “Repudiando a luta de classes, o partido também prega a restauração do valor do trabalho como fonte única da riqueza nacional. É o trabalho que dignifica o homem: nunca um país se ergueu da miséria e da pobreza a uma fortuna melhor e mais elevada sem a colaboração de todos os cidadãos pelo seu trabalho, através de sua direção ou execução. O trabalho efetiva a criatividade do homem, pelo qual participa da Criação divina. Restaurar o valor do trabalho e, consequentemente, das condições dignas de trabalhar, com remuneração justa e adequada ao êxito do ofício, é uma bandeira essencialmente conservadora, que deve ser recuperada”. Aqui o alvo são os trabalhadores precarizados, politicamente desorganizados, sem direitos sociais, perspectivas de futuro diante da voragem capitalista e, por isto mesmo, predispostos a aceitar o salvacionismo da anti-política e encontrar um sentido para viver militando nas hostes fascistas.
Além da “afinidade eletiva” a adesão da Aliança pelo Brasil ao neoliberalismo extremado produz ainda um efeito ideológico que permite aos bolsonaristas recusarem a pecha de fascistas e brandirem sem pudor que o “nazismo é de esquerda! ” e que, portanto, se assemelha ao “comunismo”. Na verdade, trata-se de uma estratégia ideológica que se estabeleceu no âmbito da Guerra Fria e que adota a chamada “teoria do totalitarismo” identificando fascismo clássico e comunismo como regimes “totalitários”, pois baseados no estatismo econômico. Assim, os partidos e movimentos fascistas surgidos no pós-guerra puderam se afirmar como “democráticos”, “liberais”, porém “conservadores”, camuflando suas origens e verdadeira filiação política, por conta de sua associação com o neoliberalismo e o livre mercado. Certas versões do fascismo contemporâneo, como o bolsonarismo, continuam apelando para esta camuflagem para se legitimar.
Por fim, o novo partido se dispõe a estabelecer relações com partidos e movimentos conservadores de outros países, muitos já ocupando governos, visando a criação de uma verdadeira “Internacional Fascista”, capaz de viabilizar apoio financeiro e midiático e manipular eleições.
Na atual conjuntura a perspectiva de fascistização do regime político se coloca como uma possibilidade real e orienta as ações do governo Bolsonaro. A criação de um partido próprio e de conteúdo fascista faz parte desta perspectiva na medida em que busca criar um instrumento de organização e mobilização política que o bolsonarismo ainda não possui. Mas com o qual pretende não apenas ganhar eleições, mas ampliar sua base social num arco variado de classes e grupos sociais, constituir um movimento de massas amplo e ocupar o aparelho de Estado com seus adeptos. Somente a reação decidida dos trabalhadores com base na clareza acerca do perigo que nos cerca é capaz de conter este processo e derrotar a perspectiva fascista. Esperar as eleições de 2020 para reverter este quadro de pode se tornar uma quimera. Que os trabalhadores passem à iniciativa agora no plano das lutas sociais, antes que seja tarde demais.
[1] — Todas as citações em itálico e entre aspas foram retiradas do programa do partido Aliança pelo Brasil. https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2019/11/PROGRAMA-DA-ALIANC%CC%A7A-PELO-BRASIL-1.pdf, acesso em 28/11/2019.