A nova “chantagem do mal menor”.

Durante os anos de governos do PT vigorou sobre partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais uma chantagem política que denominamos “chantagem do mal menor”. Diante das críticas à orientação neoliberal, à política de conciliação de classes e ao abandono de bandeiras históricas dos trabalhadores o governo e os setores mais afinados com o lulismo no PT, na CUT e em outras organizações respondiam: “se está ruim com o PT, pior seria com o condomínio PSDB/DEM”. Ou seja, entre uma perspectiva neoliberal extremada, economicamente recessiva e politicamente conservadora e uma perspectiva neoliberal moderada, economicamente expansiva (para padrões neoliberais) e comprometida com determinadas demandas sociais por meio de políticas sociais compensatórias, os trabalhadores e suas organizações deveriam optar pela segunda, apoiando-a politica e eleitoralmente. Por treze anos e várias eleições esta chantagem politica foi bem sucedida, mesmo que em condições crescentemente pioradas. Porém, o Golpe de 2016 abriu um novo período da luta de classes, garantindo a ascensão de uma variante neoliberal ainda mais extremada, associada a um processo de fechamento político que substituiu a passos largos a democracia de cooptação oriunda da Nova República por uma democracia restrita com salientes traços repressivos. Estas condições favoreceram enormemente a vitória de Bolsonaro nas eleições fake de 2018, com uma plataforma neoliberal ainda mais extremada, além de francamente associada a uma perspectiva politica fascista. Ainda assim, em sete meses de governo a realidade mostrou-se mais sinistra e perversa que o imaginado, criando as condições para a emergência de uma nova “chantagem do mal menor”, desta vez fundada no dilema “ruim com o Centrão, pior com Bolsonaro”.

Diante da radicalização politica e ideológica promovida por Bolsonaro nas últimas semanas, que parece estar vencendo a disputa interna no governo com o “partido do Judiciário” e o “partido militar” e busca mobilizar sua base social impondo de modo mais estridente e agressivo sua pauta fascista e neoliberal extremada, os partidos de centro-direita no Congresso tentam se constituir como uma alternativa “civilizada” e “responsável” ao histrionismo presidencial e sua pretensa irracionalidade. Liderado pelo presidente da Câmara dos Deputados (Rodrigo Maia) e com o apoio de governadores, de setores do STF e da grande mídia, o “Centrão” tem se apresentado como uma força política aberta ao diálogo, à negociação e à mediação do conflito político, transformando o Congresso Nacional numa espécie de guardião do que ainda resta de democracia, num anteparo ao autoritarismo e à insensatez emanados do Executivo. Por conta disto tem atraído os partidos de oposição de esquerda para o âmbito da luta institucional, buscando criar as condições para um grande pacto nacional em nome da governabilidade e da domesticação do bolsonarismo.

Na verdade, mesmo de que forma negociada e por dentro da legalidade Rodrigo Maia e o “Centrão” tem encaminhado a aprovação das medidas neoliberal extremadas de interesse estratégico para o grande capital, mesmo que fazendo uma concessão aqui e outra acolá, atenuando alguns de seus aspectos mais perversos para os trabalhadores, como na reforma da previdência, na lei da liberdade econômica, no pacote anticrime, no projeto Future-se e na reforma tributaria. Ou seja, o “Centrão” se posiciona na luta política como uma espécie de braço “civilizado” do campo golpista, alternativo à aparente “raiva canina” do governo, e em quem os trabalhadores e suas organizações devem se fiar para evitar o “mal maior”: uma escalada autoritária que leve ao fechamento total do regime político em direção ao fascismo e a um “capitalismo celerado” liderado por milicianos, desmatadores, “escravocratas”, sonegadores e sicários em geral.

Esta perspectiva tem se tornado realidade quando se observa o pouco empenho de setores da oposição de esquerda e das centrais sindicais nos últimos atos e protestos de massa contra a reforma da previdência e contra os cortes na educação em favor da negociação institucional (14J, 13A), o “apoio envergonhado” dos governadores de oposição à reforma da previdência nos estados e municípios e a ausência de um calendário mínimo de mobilização e lutas. Também se elevam as vozes em defesa de um grande pacto político envolvendo os maiores partidos do centro-direita (PSDB, DEM, MDB) e os partidos do centro-esquerda do espectro político (PT, PDT, PSB), com apoio de setores da mídia, do judiciário e dos militares, em torno do isolamento do bolsonarismo e, quiçá, de um processo de impeachment, sem que as medidas econômicas, jurídicas e políticas da pauta do golpe tomadas desde 2106 sejam revertidas. Ou seja, em troca da interrupção de uma escalada autoritária de perfil fascista se busca atrair a esquerda para a consolidação do golpe e sua pauta politica e econômica, consumando a expropriação dos direitos sociais e trabalhistas e o estabelecimento de uma democracia restrita, sem que seja preciso uma mudança formal de regime. Isto significa que no atual momento o “Centrão” é o instrumento para o que o bloco no poder não conseguiu nas eleições de 2018: a legitimação do golpe de 2016 e a estabilidade politica.

Na verdade essa chantagem revela uma espécie de “dobradinha”, de divisão de tarefas, entre o governo Bolsonaro e o “Centrão”, muito útil para o encaminhamento dos interesses burgueses, pois enquanto o primeiro “morde”, ameaçando e executando retrocessos em todas as áreas, principalmente no tocante aos direitos sociais e trabalhistas, e instilando nas bases bolsonaristas (principalmente entre policiais, militares e proprietários rurais) o ódio e a violência cotidiana contra a esquerda, movimentos sociais, mulheres, lgbt’s, negros, índios e pobres, o segundo “assopra”, operando nos marcos da legalidade (mesmo que sob democracia restrita), acatando demandas específicas da oposição de esquerda e barrando os aspectos mais acintosamente autoritários e particularistas das medidas governistas. Para o grande capital, que sempre guardou certo distanciamento em relação ao bolsonarismo, este parece ser o caminho ideal para amainar a crise política e conquistar a estabilidade necessária para superar o quadro recessivo sem precisar de uma ruptura institucional e nem reverter o golpe e as medidas autoritárias já tomadas. O problema desta tática é saber até que ponto Bolsonaro abandonará suas pretensões cesaristas e se deixará tutelar por essa “divisão de tarefas” sem causar uma nova crise a cada semana (e nem afetar os negócios internacionais do grande capital e mesmo de setores bolsonaristas) e até onde o descontentamento com seu governo continuará crescendo sem gerar uma grande mobilização por sua derrubada. Para que a situação não chegue a este ponto e os trabalhadores adquiram a iniciativa politica são cruciais para os interesses burgueses a relativa “naturalização” midiática e institucional das idiossincrasias presidenciais, fazendo “vista grossa” aos sucessivos crimes de responsabilidade e ilegalidades cometidos por ele e seus ministros, e a opção por colocar “água fria” sempre que a fervura politica atinja o nível de ebulição.

Para os trabalhadores não interessa qualquer das alternativas postas na mesa pela chantagem do “mal menor” (neoliberalismo extremado com fascismo ou neoliberalismo extremado com democracia restrita), cabendo a constituição de uma frente que aglutine as forças antigolpistas em torno de um calendário de greves e mobilizações de massa e de uma pauta política de reversão do golpe e das medidas neoliberais aprovadas desde então (teto de gastos, reforma trabalhista, terceirização total, lei da liberdade econômica, etc.). Um calendário de greves e mobilizações que afete a lucratividade do capital e inviabilize a chantagem do mal menor com a anulação das eleições de 2018 em todos os níveis por conta de sua clara ilegitimidade, a destituição do governo Bolsonaro, dos governos estaduais e dos mandatos parlamentares e a anulação de seus atos, a convocação de novas eleições gerais para 90 dias, a revisão dos atos da Lava Jato, a libertação imediata de todos os presos políticos. Fora disso, os trabalhadores e suas organizações continuarão reféns da nova chantagem do mal menor, da agenda burguesa e da escalada de expropriação de direitos sociais e garantias jurídico-políticas. Não basta derrotar o governo Bolsonaro, há que se derrotar o golpe e todo o campo político que lhe deu e dá sustentação.

David Maciel

Doutor em história pela UFG, prof da faculdade de história da UFG, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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