Aconteceu na Universidade Federal do Pará em Altamira, de 17 a 19 de novembro, o encontro “Amazônia Centro do Mundo”, que reuniu índios, ribeirinhos, cientistas, estudantes, e ativistas brasileiros e internacionais, numa preparação para a Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP-25), que se realizará em dezembro, na Espanha. Falou-se principalmente em justiça social e meio ambiente, mas as grandes questões subjacentes na verdade foram o nacionalismo e a soberania nacional. Afinal, a questão climática é, por definição, um problema global, em que a floresta amazônica desempenha um papel fundamental, seja queimando e emitindo carbono ou mitigando o efeito estufa e regulando regimes de chuva. Por outro lado, sua preservação contraria interesses de grupos econômicos locais que vivem de atividades que provocam a degradação da floresta.
Desde logo anunciava-se um grande evento, com a presença confirmada do cacique Raoni, indicado para o Nobel da Paz por sua luta pela preservação da Amazônia e proteção dos povos indígenas, acompanhado por um grande número de índios Kayapó; do cientista climático Antônio Nobre, que defende a importância da floresta para a manutenção do regime de chuvas na América do Sul através dos chamados “rios voadores”; de Manoela Carneiro da Cunha, possivelmente a maior autoridade em povos indígenas no país; e da jornalista Eliane Brum, quem melhor tem escrito sobre o desastre de Belo Monte para a região de Altamira e sobre outras questões importantes para a Amazônia, entre vários outros expoentes da conservação.
O clima de tensão que dominou o evento já se anunciou cerca de uma semana antes, através de manifestações do antropólogo Edward Luz, que divulgou um áudio aos moradores da região de Altamira denunciando o encontro como um “ataque contra o Brasil” promovido por “ONGs internacionais, eco-xiitas e ecossocialistas, comandadas pelo Instituto Socioambiental, pagas e financiadas pela Fundação Ford, Greenpeace, WWF, e outras organizações esquerdistas”. Segundo ele, o objetivo do encontro seria “impor de forma sorrateira e politicamente correta as supostas soluções socioambientais” que seriam medidas da “agenda eco-xiita e ecossocialista contra o Brasil, contra o desenvolvimento nacional”. Classificou essa agenda como a “próxima batalha pela soberania da Amazônia”: “Nós, patriotas brasileiros, …, podemos impedir esse ataque que as ONGs pretendem proferir contra o Brasil, se tivermos presentes em força numérica, …, podemos defender nossas propostas de desenvolvimento, e acabar assim azedando o caldo deles, colocando areia na farinha de tapioca deles”, prosseguiu, convocando a populações para que somem forças no que chamou de “campo de batalha democrático” pela defensa do “desenvolvimento, o progresso e a soberania nacional na Amazônia brasileira”. Concluindo, pediu a divulgação de seu áudio, que classificou como uma “convocação de guerra, de batalha”.
O evento foi aberto em clima de tranquilidade na noite do domingo dia 17, com discursos de Don Erwin, bispo emérito do Xingu, e do cacique Raoni, defendendo a preservação da floresta, além de apresentações de dança, poesia, feira de artesanato e comidas típicas. Mas logo na manhã do dia seguinte ficou claro que a conclamação de Edward Luz para o enfrentamento surtira efeito. A fila do credenciamento estava dominada por pessoas com o visual country, de boné, camisa xadrez, bota e calça comprida, dentre eles alguns velhos conhecidos, antigos defensores da hidrelétrica de Belo Monte. Edward ia orientando-os enquanto se dirigiam à quadra poliesportiva da UFPA: “sentamos à direita, como nos convém”. As várias cadeiras foram sendo ocupadas em clima de certa tensão, mas tranquilidade. E o evento não começava, apesar do horário avançado. Logo percebi que faltavam os grandes protagonistas da festa, os índios Kayapó, que são as estrelas maiores de qualquer evento em que participam, e, tal qual uma noiva em um casamento, sempre chegam atrasados, quando todos já estão presentes, esperando. Entraram lindamente, como é de costume, em fila, ornamentados com cocares e pintados, cantando suas músicas tradicionais, despertando aplausos e vivas da plateia de estudantes, ribeirinhos e ambientalistas, e abrindo de fato o encontro.
Poucos instantes depois a confusão que se temia começou. Mal terminado o canto indígena, membros do grupo à direita começaram a exigir que se cantasse o hino nacional. Edward Luz aproximou-se da mesa, já composta pelos palestrantes, com o cacique Raoni ao centro e uma fila de índios à sua frente, para exigir dos organizadores a entoação do hino. Foi afastado por alguns índios da mesa, dando início a um empurra-empurra, com muita gritaria, que lhe rendeu um puxão de cabelo. Ali, pareceu que nenhum diálogo minimamente civilizado seria possível. Mas, acalmados os ânimos, o hino acabou sendo cantado por todos juntos, em relativa harmonia.
Quase todos discursos inaugurais foram interrompidos por gritos de vivas e por “Amazônia centro do mundo!” de um lado e “Amazônia centro do Brasil!” do outro. O grupo da direita acusava os organizadores de compor a mesa apenas com a “panelinha” de ambientalistas, sem representantes dos grandes produtores rurais, madeireiros e mineradores (o que eu acho absolutamente razoável pois não se tratava de um fórum de todos os setores sociais, mas de um encontro para a discussão de atores socioambientais para discutir soluções climáticas para a Amazônia). Acusaram as ONGs de manipuladoras a serviço de interesses escusos internacionais. O nome de Emmanuel Macron, o presidente francês, foi especialmente citado, pelas suas recentes desavenças com Bolsonaro relativas à devastação da floresta.
De toda forma, no final das contas, fora um ou outro empurrão, muita cara feia de ambos os lados e encontros de peito estufado, tudo o mais correu com certa tranquilidade, sempre sob o olhar distante de policiais que monitoravam o evento a fim de manter os ânimos controlados. Ainda assim, o blog Diário do Centro do Mundo anunciou que “Bolsonaristas invadem encontro e tentam agredir cacique Raoni no Pará”, assim como o jornal Diário Causa Operária: “Bolsonaristas tentam agredir cacique Raoni; é preciso reagir”. Para ser justo, não é verdade. Não tentaram agredir Raoni (ou não teriam saído ilesos). Nem invadiram coisa nenhuma. Os ruralistas entraram pacientemente na fila e se cadastraram como todo mundo. O que eles realmente tentaram, e de fato conseguiram, foi, atingir os objetivos iniciais de Edward Luz: “azedar o caldo” ou “jogar areia na tapioca”. Fizeram com que a elite econômica da região, que são definitivamente os “vilões da degradação ambiental” passasse, pelo menos diante de boa parte da imprensa local e consequentemente de boa parte da população de modo geral, por vítima (patriótica) de um suposto autoritarismo das ONGs manipuladoras de ingênuos a serviço de interesses internacionais.
Em um segundo momento, ainda no dia 18, dividimo-nos em seis grupos de trabalho (GTs) para discutir assuntos específicos: (1) “Falsas Soluções que Ameaçam a Floresta”; (2) “Envolvimento Para Amazônia do Futuro”, (3) “Resistência das Mulheres na Amazônia”, (4) “Juventudes e Novos Movimentos Globais”, (5) “Educação Para Enfrentar o Desenvolvimento Predatório” e (6) “Povos das Florestas e das Águas”. Esse último teve Manuela Carneiro da Cunha como facilitadora e tive a felicidade de participar dele.
Depois de ouvir o depoimento de vários indígenas e ribeirinhos sobre seus problemas e aflições, Manuela buscou trazer uma visão histórica do que está acontecendo hoje no Brasil. Do sofrimento histórico de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e de como o governo atual explicitamente se colocou contra os povos indígenas quando o atual presidente, ainda candidato, declarou que não demarcaria mais um centímetro de terras indígenas. Edward Luz também participou deste grupo, e disse que os grandes proprietários de terra também contribuiriam muito para a preservação da floresta, tanto quanto os indígenas e os ribeirinhos, pois nossa legislação ambiental é uma das mais rígidas do mundo, exigindo 80% de áreas protegidas nas fazendas. A afirmação é totalmente falaciosa, como imediatamente observou outro participante do GT. Não é porque a lei determina a preservação pelos grandes proprietários rurais que ela é comprida. De uma ponta a outra da Transamazônica o que se vê é um cenário de devastação quase que completa e a lei é sistematicamente ignorada. Edward Luz ainda atacou novamente as ONGs e a criação do “Território Ribeirinho”, área destinada a preservação de seu modo de vida tradicional, a beira do reservatório de Belo Monte, no Xingu, recentemente aprovado pelo IBAMA. Segundo ele, este projeto teria caráter “socialista” e condenaria seus ocupantes ao atraso.
É natural que as ONGs tenham financiamento internacional. Quem financiaria um evento como esse, que tem custos de infraestrutura, transporte, segurança, alimentação? O governo brasileiro? Já trabalhei em contato com muitas delas. Nenhuma opera sob pressupostos socialistas ou coisa parecida. São todas absolutamente capitalistas, na busca de alternativas econômicas, mas que não esgotem imediatamente os recursos naturais do planeta, que se revela crescentemente vulnerável. Quanto ao Território Ribeirinho, a preservação da vegetação nativa na beira dos rios, como determina a legislação, também não condena ninguém ao atraso. Muito pelo contrário. Espécies nativas com o cacau e o açaí podem ser amplamente cultivadas nessas áreas e atingem os melhores preços nos mercados local e internacional. Aliás, o estabelecimento de áreas de uso comum em um território de forma alguma constitui uma experiencia socialista simplesmente por pressupor um mínimo e cooperação e solidariedade, características típicas das comunidades tradicionais.
Definitivamente, não havia nada de essencialmente esquerdista ou anticapitalista no encontro, como esbravejavam seus críticos. Um de seus pontos altos, por exemplo, foi quando o cientista Antônio Nobre destacou como a presença da floresta preservada em uma terra indígena nas proximidades de um município no Mato Grosso aumentava sua taxa pluviométrica. Essa chuva extra permite uma segunda colheita de soja, o que rende ao município tantos milhões de dólares de receita extra anual. As discussões, de modo geral, trataram simplesmente da busca de caminhos para um capitalismo menos predatório, menos invasivo, menos destrutivo e assassino, como o que se vê atualmente por toda a Amazônia.
Francamente, que nacionalismo é esse que se veste de verde amarelo, canta o hino nacional, mas defende um projeto como o da mineração de ouro pela empresa canadense Belo Sun? Mineradora que pretende mandar toneladas do metal nobre para exterior e abandonar no Xingu uma gigantesca montanha eterna de rejeito extremamente tóxico que cedo ou tarde vai vazar, destruindo que resta do nosso rio? Que nacionalismo é esse defende invasão da Amazônia pela cultura canavieira, como recentemente aprovado pelo governo de Bolsonaro? A liberação de centenas de agrotóxicos perigosíssimos proibidos em vários lugares do mundo civilizado? Que busca a aprovação da produção de soja e outras culturas de grande escala em terras indígenas, destruindo elementos fundamentais da rede de áreas de proteção ambiental do país? Quando o presidente da república lava as mãos para o problema das queimadas, reduzindo-as a uma questão sem solução (“Bolsonaro diz que desmatamento é cultural no Brasil e não acabará”), como cantar o hino junto daqueles que defendem a destruição tudo aquilo de mais precioso que associamos à nossa pátria amada? É muito difícil. Assim como é difícil voltar a usar a camisa da seleção depois de seu uso político pelos “coxinhas”. Mas de alguma forma precisamos recuperar esses símbolos nacionais capturados pela direita. Para mim está claro que os verdadeiros patriotas são justamente os que menos se envolvem em bandeiras ou estufam o peito para falar em cantar o hino, mas se emocionam com os cantos e cocares dos Kayapó e se sentem representados pela figura imponente do cacique Raoni.