No início do atual desgoverno, por ocasião de uma análise de conjuntura para o ANDES-SN, divergia de meu companheiro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Enquanto ele apontava para a profundidade da crise e apostava em um esgotamento mais rápido do governo, eu defendi que deveríamos guardar a possibilidade do governo se manter e encontrar bases de aceitação para sua continuidade, mesmo no campo econômico e em segmentos de massas populares.
Passei todo o ano de 2019 acreditando que Plininho estava certo e eu errado. O desgoverno foi aos trancos, a prometida aceleração da economia patinava, segmentos pareciam conspirar visando uma alternativa sem Bolsonaro. O Brasil caía no descrédito internacional à cada trapalhada do presidente ou de sua trupe. Os trabalhadores, muito mais timidamente do que necessário, resistiam.
Entretanto, entramos em um novo ano, tudo isto continua, inclusive a crise econômica e suas consequências, o governo produz trapalhadas e grosserias num ritmo ainda maior, as denuncias sobre envolvimento com as milícias ficam incontornáveis e… o presidente miliciano continua no cargo e pesquisas indicam que ganharia as eleições contra qualquer candidato.
Nossa pergunta, então, é qual a razão de sua permanência? Plínio tinha toda razão sobre a capacidade deste governo, ou de qualquer outro, em reverter as determinações de uma crise muito mais profunda e com isso retomar patamares de crescimento que pudesse gerar algum tipo de euforia para que a burguesia e parte das massas aceitassem o escárnio público de um mandatário grotesco e tosco.
Gostaria, então, de relembrar alguns pontos que indicava à época e acrescentar outros na tentativa de lançar luz ao paradoxo.
Em primeiro lugar está a aplicação rigorosa da agenda do capital (reforma trabalhista, reforma da previdência, reforma tributária, desmonte do Estado, aceleração das privatizações e entrega do patrimônio, etc.). Este aspecto não pode, entretanto, ser atribuído ao governo, uma vez que foi tocado quase que exclusivamente pelo parlamento. Devemos notar que estamos vivendo um sonho de toda a teoria política burguesa: a separação dos poderes. Enquanto o executivo se empenha em suas sandices, o parlamento vai tocando a vida e passando o trator sobre os trabalhadores e seus direitos sob o olhar complacente das centrais sindicais.
Em segundo lugar, quando olhamos a catástrofe econômica, evidenciada no desemprego, no abandono das obras de infraestrutura, no desmonte da capacidade industrial instalada, podemos correr o risco de não notar que tem sempre um segmento do capital lucrando com a tragédia de outros. No final de 2019, 13 dos 26 setores da indústria registraram crescimento, fato que não ocorria desde março de 2018, puxados pela indústria automobilística (4,3%), produtos de metal (3,7%), móveis (9,0%), equipamentos de informática e eletrônicos (3,0%), produtos de borracha e plásticos (1,4%). Outros setores caíram, como máquinas e equipamentos (- 2,8%), indústria farmacêutica (-4,6%), assim como indústrias extrativas (-1,2% ) e o setor de petróleo (- 0,8% ) também caíram.
Em um quadro geral a indústria teria crescido 1,1%. Destaca-se, nos dados do IBGE, que as grandes categorias apresentaram crescimento em 46 dos 79 grupos e 51,9% nos 805 produtos pesquisados e que os quatro maiores bancos tiveram um aumento de quase 15% em sues lucros atingindo a marca recorde de 59,7 bilhões em 2019.
Um economista mais competente, como o Plininho, diria que os números mostram um crescimento pífio e que a economia está mais para andar de lado do que a esperada retomada, o que me parece verdade. No entanto, o núcleo do grande capital monopolista (industrial, financeiros, comercial, etc.) está conseguindo manter taxas de lucro aceitáveis nesta economia em crise e acredita que as reformas geram a base para a esperada retomada.
Resta, então, a dimensão política. Os segmentos políticos, institucionais, midiáticos, religiosos, judiciários, fecharam com a pauta e a estão respaldando, alguns alegremente, alguns com reticencias e, ainda, outros possivelmente com náuseas. A rede Globo é um bom exemplo. Pode gastar quinze minutos em seu jornal para atacar o presidente por suas ligações com as milícias, ironizar sua falta de compostura, pronunciar desagravos contra uma agressão contra uma jornalista, para depois aparecer o Sardenberg e explicar como que o governo está aplicando uma pauta liberal na economia e fazendo o dever de casa.
Estou convencido que existem segmentos que operam a possibilidade de afastamento do miliciano, mas eles recuaram momentaneamente e parecem ter aderido à tese do ruim com ele, pior sem ele. Creio que a razão está no ultimo fator: o apoio de parte da população.
O governo direitista e reacionário logrou fraturar o país. O miliciano não é o presidente de um partido ou um movimento político (parece que a iniciativa de um partido político está com dificuldade de vingar com menos de 6% das assinaturas necessárias), ele é a expressão política de um segmento significativo do reacionarismo, do preconceito, do anticomunismo, do fanatismo religioso obscurantista. Os seus braços políticos (parte das igrejas evangélicas, as milícias, os aparatos policiais) repercutem em centenas de grupos e indivíduos que fizeram do combate aos inimigos da Nação, da família, da luta contra o globalismo e o marxismo cultural, da defesa da cristandade contra os homossexuais e pervertidos políticos, a razão da sua existência e a base de uma força política que funciona como ameaça e chantagem no frágil equilíbrio da ordem institucional democrática.
A força desta bolha política é que ela parece ser imune a escalada das bobagens, despautérios e sandices do governante, podendo mesmo até se alimentar destes estrumes, assim como teria a incrível capacidade irracional de jogar a culpa da catástrofe econômica em algum tipo de complô comunista, petista ou envolvendo o Vaticano.
A resultante, infelizmente para o país, é que, pelo menos para o momento, o miliciano fica e pode encontrar os meios de continuar, por dentro ou por fora da ordem democrática.