André Naves *
A Medida Provisória nº 927/2020, que dispõe sobre medidas emergenciais trabalhistas a serem adotadas durante o período da pandemia Covid-19 (“coronavírus”), atua no sentido contrário de medidas protetivas do emprego e da renda (em acordo com as melhores práticas econômicas de proteção e inclusão sociais) que vêm sendo adotadas pelos principais países atingidos pela pandemia — alguns deles situados no centro do capitalismo global, como França, Itália, Reino Unido e Estados Unidos.
Desastrosa, a MP aniquila o mínimo restante dos alicerces das relações individuais e coletivas de trabalho, impactando direta e profundamente a subsistência digna (art. 7, IV, CF) dos trabalhadores, das trabalhadoras e de suas famílias.
Ao mesmo tempo que atira à incerteza a sobrevivência de micro, pequenas e médias empresas, com repercussões insuperavelmente danosas para a vida econômica e social.
Em pleno agravamento de uma crise inédita, a MP nº 927 dobra a aposta governamental no pior egoísmo atomizante, já que ao privilegiar acordos individuais a convenções e acordos coletivos de trabalho, viola, também, a Convenção nº 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A medida esvazia a negociação mesma, ao deixar a critério unilateral do empregador a escolha sobre a prorrogação da vigência da norma coletiva. Determina a possibilidade de se prolongar a suspensão (1) do contrato de trabalho por até quatro meses, sem qualquer garantia de fonte de renda ao trabalhador e à trabalhadora, desvinculada do valor do salário-mínimo.
A norma, outrossim, suprime o direito ao efetivo gozo de férias, porque não garante, a tempo e modo, o adimplemento do 1/3 constitucional. Também como se fosse possível institucionalizar uma “carta em branco” nas relações de trabalho, a referida MP obstaculiza a fiscalização do trabalho, conferindo-lhe natureza meramente “orientadora”.
Exigindo somente o sacrifício individual das pessoas que necessitam do trabalho para viver, a MP nº 927 indica que soluções indicadoras de novos patamares de pactos sociais solidários não serão consideradas, tais como a taxação sobre grandes fortunas, que tem previsão constitucional; a intervenção estatal para redução dos juros bancários, inclusive sobre cartão de crédito, que também tem resguardo constitucional; a isenção de impostos sobre folha de salário e sobre a circulação de bens e serviços, de forma extraordinária, para desonerar o empregador.
A Medida, ainda, retira dos trabalhadores e das trabalhadoras as condições materiais mínimas para o enfrentamento do vírus e para a manutenção de básicas condições de subsistência e de saúde.
Na contramão do que seria razoavelmente esperado neste momento, não promove qualquer desoneração da folha ou concessão tributária — com a exata e única exceção do FGTS, parte integrante do salário.
Há omissão, que se converte em silêncio injustificável, quanto à proteção aos trabalhadores e às trabalhadoras informais (2) . É notável a desconsideração sobre a justiça e a progressividade tributárias. Ademais, a forte, e necessária participação estatal, assumindo parte (ou, até mesmo, a integralidade) dos salários e da produção, não aparece como solução.
As inconstitucionalidades da Medida Provisória nº 927 são patentes. A Constituição de 1988 deve ser invocada sobretudo nos momentos de crise, como garantia mínima de que a dignidade dos cidadãos e das cidadãs não será desconsiderada.
Ela confere à autonomia negocial coletiva, e aos sindicatos, papel importante e indispensável de diálogo social, mesmo, e mais ainda, em momentos extraordinários. Estabelece a irredutibilidade salarial e a garantia do salário-mínimo como direitos humanos. Adota o regime de emprego como sendo o capaz de promover a inclusão social. Insta ao controle de jornada como forma de preservação do meio ambiente laboral, evitando que a exaustão e as possibilidades de auto e de exploração pelo trabalho sejam fatores de adoecimento físico e emocional.
A presente crise não pode justificar a adoção de medidas draconianas, frontalmente contrárias às garantias fundamentais e aos direitos dos trabalhadores. Impor a aceitação dessas previsões, sob o argumentos emergenciais não é condizente com a magnitude que se espera do Estado brasileiro, Democrático e de Bem-estar Social.
Os poderes constituídos — Executivo, Legislativo e Judiciário — e a sociedade civil são corresponsáveis pela manutenção da ordem constitucional. Em momentos como o presente é que mais se devem reafirmar as conquistas e salvaguardas sociais e econômicas inscritas, em prol da dignidade da pessoa humana e do trabalhador e da trabalhadora, do desenvolvimento sócio-econômico e da paz social.
1 — Em tweet recém publicado, o Presidente Bolsonaro alegou ter revogado tal dispositivo.
2 — As propostas acerca de uma Renda Básica Universal, focalizada nos mais vulneráveis, não foi sequer tangenciada.
* André Naves é Defensor Público Federal , Escritor e Analista Político, especialista em Seguridade Social e Direitos Humanos. Publica regularmente sobre estas questões em seu canal no Youtube: https://bit.ly/yt_andr%C3%A9naves