A combinação de uma pandemia de coronavírus com uma crise econômica mundial desafia a capacidade do governo Bolsonaro de enfrentar os problemas reais da população. A julgar pelas declarações e iniciativas (ou falta de iniciativas) do presidente e de seus ministros, a orientação é negar a gravidade dos fatos e deixar o desdobramento da crise à sua própria sorte. Seguindo o mantra neoliberal “laissez-faire, laissez-passer” — deixe fazer, deixe passar -, a mensagem é de que cabe ao “mercado” resolver tudo espontaneamente.
Um dia depois de minimizar a gravidade do problema gerado pela disseminação exponencial do coronavírus, afirmando que “outras gripes mataram mais do que essa”, Bolsonaro convocou uma rede nacional de televisão para se pronunciar sobre o assunto. Em sua canhestra manifestação, o presidente se restringiu a apelar para que seus correligionários suspendessem as manifestações contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, aproveitando o pronunciamento para enaltecer a pertinência e legitimidade dos atos. Nenhuma informação, nenhuma recomendação, nenhuma providência foi anunciada para preparar os brasileiros para a crise de saúde dantesca que se avizinha. O dinheiro público foi utilizado para fazer proselitismo ideológico.
Ignorando as evidências gritantes de que a pandemia de coronavírus precipitou uma crise econômica mundial que já vinha se esboçando, com impacto devastador sobre a economia brasileira, o presidente renegou a realidade, alegando que a histeria dos mercados não passava de uma “fantasia”. Enquanto o presidente falava em Miami, o Real era submetido a um ataque especulativo que levou o Banco Central a queimar quase US$ 9 bilhões de reservas cambiais em três dias e reverteu irremediavelmente as expectativas dos investidores sobre o futuro da economia brasileira.
Os epígonos seguem os passos do chefe. Não há nenhuma preocupação em resolver os problemas reais da população. O governo funciona em circuito fechado para o grande capital e para a camarilha.
Tido como um homem sério e responsável pela grande mídia, o Ministro da Saúde aproveitou a oportunidade gerada pelo avanço do coronavírus para aumentar sua exposição midiática e reforçar a intriga autoritária contra o Congresso Nacional. No entanto, diante da força dos fatos, depois de muita hesitação, acabou reconhecendo o óbvio: “ainda bem que temos o SUS”. Em seguida, passou a divulgar as recomendações da vigilância sanitária e a repetir as recomendações da OMS. Mas ficou basicamente só nisso. Praticamente nada foi feito para preparar o sistema de saúde pública para uma emergência epidemiológica de grande escala e inédita.
Sem apresentar nenhum plano de contingência concreto, Mandetta apenas pediu ao Congresso Nacional a liberação de cerca de R$ 5 bilhões em recursos de emendas parlamentares para reforçar o orçamento de sua pasta. O montante é insuficiente para repor o corte de R$ 20 bilhões no orçamento do SUS durante o governo Bolsonaro e muito aquém do que seria necessário para enfrentar a gigantesca crise de saúde que se avizinha, sobretudo quando se considera que a asfixia financeira dos últimos anos levou ao desmonte do Mais Médicos, acelerou o sucateamento dos hospitais públicos, o fechamento de leitos, o desabastecimento de pessoal, o corte de equipamentos e medicamentos, sem mencionar o fato de que a rede de saúde pública já se encontra saturada pelas demandas decorrentes das epidemias de dengue, sarampo e febre amarela.
Para se ter uma ideia comparativa, os recursos emergenciais para enfrentar o coronavírus anunciados pelos Estados Unidos, Reino Unido e Itália são da ordem de R$ 240, 178 e 20 bilhões, respectivamente. Em outras palavras, a intenção do Ministro da Saúde é fazer um gasto extra de apenas R$ 24 reais per capita, isto é, 113 vezes menos que o previsto pelo Reino Unido (que tem um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo). Não teria de ser assim. Se o governo federal não gastasse um montante da ordem de R$ 478 bilhões com o pagamento de juros da dívida pública, como ocorreu em 2019, haveria recursos de sobra não apenas para atender emergências como também para melhorar as políticas públicas em geral.
As consequências são previsíveis e serão graves: faltará assistência aos necessitados, sobretudo aos pobres. A estimativa do número de casos previstos que necessitarão de terapia intensiva nos próximos quatro meses, cerca de 30 mil casos no Brasil, contrasta com a existência de apenas 16 mil leitos de UTIs para adulto no sistema público, cuja capacidade já ocupada é de cerca de 95%. Segundo a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, o déficit de unidades intensivas para atender às necessidades da crise do coronavírus é de 3.200 leitos. Sem planejamento prévio e sem recursos extras não há como viabilizá-las. Em breve, as cenas de brasileiros morrendo asfixiados por falta de assistência circularão pelo mundo. Mas Bolsonaro já tem o culpado: os parlamentares.
O todo poderoso Ministro da Economia também viu na dupla crise que abala a vida dos brasileiros uma excelente oportunidade de encurralar o Congresso Nacional. Negando qualquer caráter emergencial e extraordinário na conjuntura, Guedes limitou-se a chantagear os parlamentares a aprovar mais reformas liberais. Afrontando a inteligência dos brasileiros, o Posto Ipiranga foi lacônico: “vamos transformar a crise em reformas, crescimento e geração de empregos”.
Diante de problemas bem concretos e urgentes, Guedes respondeu com ideologia e procrastinação, como se as reformas administrativa, federativa e tributária, que demandam um longo processo parlamentar, tivessem o condão da agir retroativamente e evitar que o circo pegasse fogo. Trata-se de um disparate tão absurdo quanto seria um síndico reagir ao prédio em chamas convocando uma assembleia extraordinária para discutir o funcionamento da portaria, as mudanças na distribuição dos recursos e o novo valor do condomínio.
Quando, em poucos dias, o dólar ultrapassou a casa dos R$ 5 reais, Guedes percebeu que sua inércia acirrava a instabilidade dos mercados e improvisou uma série de medidas desconexas para acalmar o empresariado — isenção tributária para importação de equipamentos hospitalares, adiamento de imposto e ampliação da linha de crédito para empresas em dificuldade, nova liberação do FGTS dos trabalhadores, antecipação do 13º de aposentados e pensionistas. Nenhuma delas está nem longinquamente à altura do Tsunami recessivo que se abate sobre o país. Nada que de fato proteja a economia nacional do curso devastador da crise.
Estimativas preliminares das Nações Unidas avaliam que o impacto imediato da crise levará a uma contração do PIB mundial da ordem de US$ 2 trilhões, reduzindo o crescimento global em 2020 a mero 1,7% — menos da metade do previsto em janeiro. No Brasil, consultorias econômicas, que tendem a subestimar sistematicamente o impacto negativo dos choques externos, já trabalham com o cenário de um PIB anual abaixo de zero. A expectativa dos economistas neoliberais de uma recuperação do crescimento em 2020 foi definitivamente sepultada.
Presa à teia institucional e mental do neoliberalismo, a política do governo Bolsonaro para enfrentar a dupla crise que abala a vida nacional é o “Foda-se”. A preservação a qualquer custo do Novo Regime Fiscal, que congela o gasto público por vinte anos e criminaliza todo tipo de política anticíclica ou emergencial, inviabiliza qualquer possibilidade de uma política fiscal expansionista. Para o povão, resta uma única possibidade: salve-se quem puder.
A população brasileira está prisioneira de um governo fundamentalista que obedece aos interesses da plutocracia. A prioridade de Bolsonaro não é a saúde nem o emprego dos trabalhadores, mas preservar a qualquer custo o regime de austeridade fiscal e conspirar dia e noite contra a democracia. A República Miliciana é nefasta e, antes cedo do que tarde, será implacavelmente desmoralizada pela realidade concreta. Mas se não houver o que colocar em seu lugar, pode sobreviver à tempestade. Na ausência de uma insurreição popular que tome as rédeas do poder, a relutância dos parlamentares de processar Bolsonaro por crime de responsabilidade contra os interesses nacionais e contra a democracia alimenta o ovo da serpente.
A perspectiva de um futuro sombrio dá a sensação de fim do mundo. Não é o fim do mundo, mas o lento e caótico apodrecimento da civilização burguesa. O fiasco de governos antissociais, antinacionais e antidemocráticos abre brechas para mudanças radicais. É dever dos socialistas aproveitá-las para colocar na ordem do dia a necessidade da revolução social. A dupla crise que castiga os trabalhadores em todos os cantos do mundo abre um novo momento da luta de classes. Os conflitos tendem a se acirrar. A barbárie capitalista não é um fim inescapável. A hora é de coragem e criatividade para enfrentar pela raiz os desafios de nosso tempo.