O socialismo estadunidense e a “esquerda do possível”

Entrevista com Bhaskar Sunkara

O socialismo nos Estados Unidos tem uma longa e rica história. E hoje ele vive um dos seus momentos mais intensos. Mas o que estamos dizendo quando falamos sobre socialismo nos Estados Unidos? O diretor da revista Jacobin, Bhaskar Sunkara, explica isso nesta entrevista.

Por Nicolas Allen

Maio — Junho 2019

Quando Bhaskar Sunkara fundou a revista Jacobin, no final de 2010, tinha uma ambição tão simples quanto imponderável: superar a barreira que tinha mantido isolados veneráveis projetos editoriais do marxismo anglo-saxão — New Left Review, Monthly Review, Dissent — e colocar o socialismo no centro do debate do mainstream estadunidense. Essa audácia inicial foi acompanhada por uma aposta estilística: um socialismo embalado em uma linguagem comunicativa e propositiva, um design gráfico inovador e uma atitude insurgente. Daí, seus primeiros sucessos. Cinco anos depois, Jacobin já era o porta-voz indiscutível da esquerda norte-americana, mas faltava um golpe de sorte para cumprir com seu objetivo principal. A campanha de Bernie Sanders de 2015 marcou um antes e um depois: o “socialismo democrático”, etiqueta que Sanders usa para definir a sua própria filiação política, virou de repente uma expressão de uso comum e um objeto de fascinação. E também de forte rejeição, para um público americano que até recentemente olhava para aquele rótulo com a mesma descrença com que encarava uma invasão alienígena.

Por sua vez, o “socialismo democrático” referia-se a uma das influências constitutivas da revista: o agrupamento Socialistas Democráticos dos Estados Unidos (DSA, na sigla em inglês). Embora tenham esboçado diversas tendências nas páginas de Jacobin — onde se debatiam sobre os méritos do comunismo italiano, Leon Trotsky, Karl Kautsky, Ralph Miliband ou o eurocomunismo — a nova visibilidade do socialismo democrático lançou luz sobre a missão ideológica da revista. Não por acaso muitos membros de sua linha fundadora também militavam em DSA: tanto a revista quanto a organização — que não é um partido — desenvolviam uma estratégia de diálogo e procuravam polemizar com o senso comum liberal (no sentido estadunidense, em que é quase sinônimo de progressista), a fim de ganhar novos adeptos para o socialismo.

Como Sunkara relata, o triunfo de Donald Trump em 2016 foi o golpe de misericórdia. A derrota dos Democratas por uma figura amplamente rejeitada dinamitou a legitimidade do partido e abriu um vácuo, que logo seria preenchido com novas figuras da esquerda insurgente. Alexandria Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib e Ilhan Omar são os nomes que mais ressoam na mídia hegemônica, mas por trás deles há uma camada de socialistas, em grande parte filiados a DSA, muitos com menos de 30 anos, que têm registrado vitórias eleitorais em todo o país.

Embora não tenha a onipresença midiática de Ocasio-Cortez, Sunkara é regularmente convocado para a CNN e outros canais de massas para discutir o socialismo. Seu novo livro, The Socialist Manifesto (1) [O Manifesto Socialista], é uma boa síntese do tom que ele vem desenvolvendo em seu trabalho editorial: programático, agressivo, mas também jocoso e otimista. Aproveitando a nova onda socialista, Jacobin inclui, além das versões impressa e digital (com um milhão de visitas por mês), uma publicação teórica chamada Catalyst, a revista britânica Tribune, a Jacobin Itália e, em breve, uma edição brasileira da mesma revista.

De acordo com uma recente pesquisa Gallup, 51% dos jovens americanos entre 18 e 29 anos têm uma opinião favorável do socialismo, enquanto apenas 45% têm uma visão positiva do capitalismo. A que atribui a surpreendente popularidade do socialismo?

O termo “socialismo” tem sido, obviamente, usado em um sentido muito vago. Quando as pessoas falam sobre o socialismo nos Estados Unidos, geralmente se referem a uma ampliação do Estado de Bem-Estar Social. Parte da popularidade do socialismo tem a ver com isso. Apesar do fato de que a Guerra Fria terminou há algum tempo, a direita americana continua a usar o fantasma do socialismo para difamar reformas que são meramente liberais. Mesmo aquelas que os socialistas não apoiam necessariamente, como o Obamacare, promovido por Barack Obama para melhorar, com certos limites, a cobertura de saúde. Acredito que a direita estadunidense, ironicamente, conseguiu tirar da palavra algo do medo que transmitia repetindo-a diversas vezes. Eu também acho que as pessoas em geral sentem que o capitalismo não está funcionando para elas, ou que não está funcionando como deveria. Parte disso, na minha opinião, é o que está por trás dessa pesquisa.

Depois houve a campanha Sanders. Por um acaso da história, Sanders se define como um socialista democrático. Sanders foi politizado no ambiente do socialismo democrático e, mesmo quando jovem, ingressou na Liga da Juventude Socialista (Young People’s Socialist League), o braço jovem do Partido Socialista dos Estados Unidos. Mas acredito que a revista Jacobin, assim como alguns setores da esquerda norte-americana, desempenhou um papel importante na capitalização da raiva que as pessoas sentiam com o liberalismo. Occupy Wall Street, a revolta de Wisconsin de 2011, a recente onda de greves de professores, todos esses processos estão mostrando o crescente descontentamento com certos tipos de políticas dos liberais democratas. Mesmo Black Lives Matter, um novo movimento que denuncia o racismo e a violência contra os negros, nasceu do descontentamento com os políticos negros eleitos, que eram apenas democratas liberais. Jacobin conseguiu delinear uma política à esquerda do liberalismo predominante e enunciar que esse tipo de política é, em termos gerais, uma política socialista democrática. Para usar um clichê: o surgimento de Sanders e o descontentamento gerado pelas políticas liberais criaram as “condições objetivas” para que uma espécie de revolta emergisse à esquerda do centro liberal. No entanto, essa revolta poderia facilmente ter adotado uma linguagem mais populista, como a do Podemos. Tanto por conta da revista Jacobin quanto da existência de redes socialistas nos EUA, por nossa capacidade de competir maior do que nosso peso — sendo numericamente minoritária, mas com grande cobertura da mídia -, o debate tornou-se polarizado em torno do socialismo.

Não estou certo de que tenha sido positivo que o debate tenha se desenvolvido desta forma. O que eu sei é que, se Jacobin tem algum crédito nisso, é em relação à linguagem que está sendo usada.

É interessante o que você diz sobre o fato fortuito de que o termo “socialismo” tenha se difundido. Por mais de um século a questão parece ter sido: por que não há socialismo nos EUA? (2) Agora que o termo está em circulação, talvez seja hora de recuperar a história do socialismo nos EUA e redescobrir algumas figuras esquecidas, como Eugene Debs, Mother Jones ou Bayard Rustin.

É claro que vale lembrar que o socialismo não foi inorgânico para a política americana. Tem sido mais episódico do que ausente. Há mais de 100 anos, tivemos a primeira onda do socialismo americano e foi o melhor tipo de socialismo. Ele foi o melhor no sentido de que o “socialismo” era “falado” em uma língua americana, abrangendo as diferentes línguas do país: o socialismo judaico do Lower East Side de Nova York, as tradições populistas do centro e sul do país, o sindicalismo dos mineiros do oeste, os grupos socialistas cristãos. Basta olhar para o caso de Eugene Debs, um ateu e fundador do Partido Socialista, e observar como ele também falou como um pastor cristão. O socialismo ressurgiu com a Grande Depressão dos anos 1930 e novamente com a Nova Esquerda nos anos 1960. E agora novamente, mas de um modo diferente. Em outras palavras, hoje é necessário nos colocar dentro de uma tradição socialista estadunidense.

Mas o que é tão importante como incomum sobre o socialismo americano é que ele estava totalmente ausente da cena política, da Nova Esquerda até hoje. O que isso significa é que hoje podemos nos apresentar como uma força insurgente: nunca estivemos no poder, nunca fomos responsáveis por uma política de austeridade, como a socialdemocracia europeia. A situação atual nos permite trabalhar com a campanha de Sanders — a expressão massiva da centro-esquerda nos EUA — e criar um programa próprio que, em termos gerais, é socialdemocrata. Este programa é visto por muitos nos EUA como uma insurreição ou uma revolução política, embora em qualquer outro lugar do mundo possa ser visto com olhos diferentes, mesmo como simples retoques tecnocráticos. Podemos também inverter a questão que você levanta: mesmo que haja uma tradição socialista, por que um Partido Trabalhista ou um Partido Socialdemocrata não se desenvolveu nos EUA? Para ser breve, acredito que isso tenha muito a ver com a contingência: perdemos batalhas importantes em certos momentos da história. Primeiro, no contexto da industrialização americana inicial, havia uma divisão entre sindicatos artesanais e sindicatos industriais nascentes. Além disso, os EUA sempre tiveram uma estrutura partidária incomum, que impedia a existência de terceiros. Quando o socialismo começou a crescer no país em 1890, muitos eleitores — a maioria homens brancos que concordaram em votar — já haviam cimentado suas lealdades partidárias a um dos dois principais partidos, Democrata ou Republicano. E há também outras razões históricas para a ausência de um partido socialdemocrata. O Estado foi muito violento quando se tratou de suprimir qualquer conflito trabalhista. E o tamanho do país acrescentou outras dificuldades: as diferentes células do socialismo americano eram difusas e não tinham um aparato centralizado como existia em outras partes do mundo, como aconteceu com os partidos da Segunda Internacional, o Partido Socialdemocrata da Alemanha [SPD, na sigla em alemão] em 1880, ou os bolcheviques durante seus anos de atividade clandestina ou semiclandestina. É uma questão complicada que tento abordar em The Socialist Manifesto. Os socialistas estiveram sempre presentes, em pequenas células, e realmente acredito que vamos ver um renascimento. Talvez esse renascimento não use exatamente o vocabulário político que nós, como socialistas, gostaríamos. De qualquer forma, haverá uma força crescente de centro-esquerda, igualitária, um movimento com base social. A corrente sanderista na política americana não vai desaparecer, está aqui para ficar. Agora, se o uso atual da linguagem socialista, DSA ou Jacobin, estará presente por muito mais tempo, é algo que tenho menos certeza.

Você aponta a ideia de um socialismo nacional, que havia um socialismo falado com sotaque estadunidense. Existe uma tentativa em Jacobin de adaptar o marxismo à mentalidade estadunidense, ao sonho americano e à sua fixação com a liberdade?

Acredito que a base de nossa política tem que ecoar o senso comum da maioria das pessoas. Nos EUA, já temos as maiorias para promover programas socialdemocratas. Nós já temos a maioria para pressionar por uma cobertura de saúde gratuita para todos (Medicare for All) ou um programa de pleno emprego. Nós temos maiorias que pensam que a imigração é algo positivo. A questão é como pegar essas preferências políticas e transformá-las em uma plataforma. Acho que a questão não é tanto como mudar a consciência das pessoas — sua consciência não é uma coisa tão terrível -, mas como convencê-las de que a política pode fazer a diferença em suas vidas. Sob o capitalismo, é perfeitamente racional manter a cabeça baixa e não confrontar, porque mesmo que haja dependência mútua entre trabalhadores e capitalistas, sempre será uma situação de poder assimétrica. É racional que, se alguém for demitido, apele à ajuda de seus amigos e familiares para se manter à tona ou que se capacite e tente progredir. Todas essas respostas são mais racionais, sob as condições atuais, do que entrar em greve ou se envolver em um movimento político. Nosso objetivo como socialistas é dizer às pessoas que a política tem algumas soluções para elas e que pretendemos criar a estrutura que canalize seu desconforto e que lute e defenda seus interesses. Eu sou muito otimista sobre a mentalidade da maioria da população estadunidense. Estou otimista de que haverá, mais cedo ou mais tarde, uma maioria progressista duradoura neste país, como há em outros.

Quando você fala de “nós”, quer dizer DSA?

Não, refiro-me ao socialismo nos EUA e à esquerda em geral. Não acredito que o DSA seja uma organização coerente o suficiente para falarmos em termos de “nós”. Qualquer um pode se juntar à organização. É a esquerda estadunidense. Dentro do DSA existem anarco-comunistas, socialdemocratas, socialistas democráticos e trotskistas. Temos muitas tendências dentro do DSA, e geralmente elas não são organizadas em frações. Estão na maioria das vezes trabalhando juntas, o que é uma coisa boa. Não é a mesma organização em que me filiei em 2007, quando tinha 17 anos. Mesmo assim, o DSA tem apenas 60 mil membros. Então, não é um problema que não seja coerente, liderado por um comitê central que acredita ser a vanguarda da classe trabalhadora estadunidense, porque no fundo somos um país com 330 milhões de habitantes. E, embora eu acredite que temos que ser ambiciosos, devemos rejeitar as velhas arrogâncias de uma certa esquerda tradicional.

Nossa missão é participar de coalizões com correntes muito mais amplas. Eu vejo o papel do socialismo como o criador de uma rede com a capacidade de intervir em diferentes movimentos, particularmente o movimento operário, para aumentar os níveis de consciência de classe e radicalizar as lutas; mas não necessariamente que o socialismo é o movimento. E essa consideração não é tanto um slogan político, ou um medo do centralismo democrático ou de movimentos de vanguarda, mas sim uma questão prática. Estamos em um momento histórico de debilidade da esquerda. Nós não devemos superdimensionar ou inflar as coisas boas que estão acontecendo. É uma armadilha clássica da esquerda dizer: “Hoje temos 50.000 membros, ontem tínhamos 5.000, então amanhã teremos milhões e nos tornaremos um partido de massas”. Eu não vejo que isso seja o que está acontecendo.

Você pode comentar um pouco mais sobre a história do DSA?

O DSA tem suas raízes em uma organização chamada Comitê Organizador dos Socialistas Democráticos [DSOC, na sigla em inglês], fundada por uma divisão do que era o Partido Socialista dos Estados Unidos [SPA, na sigla em inglês]. O SPA teve um enorme declínio após a sua idade de ouro e tornou-se uma mera concha vazia no início dos anos 70. Nos seus últimos dias, na década de 1970, o SPA foi dividido em um setor de esquerda, um de centro e um de direita. A esquerda ainda se agarrava à insistência de Debs na absoluta independência política da classe trabalhadora e estava muito focada em competir eleitoralmente como socialistas independentes, sem vínculos com o Partido Democrata. O setor de direita se tornou quase indistinguível do liberalismo da Guerra Fria: ferozes anticomunistas, eles também haviam revisado suas posições sobre a burocracia sindical e adotaram efetivamente a central burocratizada — a Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais [AFL-CIO, na sigla em inglês] — como uma possível vanguarda de um novo movimento reformista nos EUA. Esse era o sonho, por exemplo, do ativista Bayard Rustin, que queria conectar uma parte do movimento trabalhista com a corrente principal do movimento pelos direitos civis e transformar essa confluência em uma força socialdemocrata. Rustin combinou seu apoio à Guerra do Vietnã e sua adesão ao anticomunismo com o desejo de não separar a esquerda da base social operária para construir uma futura força socialdemocrata. No centro estavam Michael Harrington e sua gente. Harrington, uma espécie de sucessor de Norman Thomas (3), era o socialista mais proeminente dos Estados Unidos. Ele havia escrito há alguns anos um best-seller sobre a pobreza, The Other America, que inspirou o programa de assistência social de Lyndon B. Johnson: a chamada “War on Poverty” [“Guerra à Pobreza”]. A posição de Harrington era encontrar um meio-termo: não ceder às tendências de direita do partido, opondo-se à Guerra do Vietnã — mais timidamente do que gostaríamos — mas, ao mesmo tempo, confiando que o Partido Democrata poderia realinhar-se e tornar-se uma força próxima dos partidos socialdemocratas europeus. Vale a pena lembrar que, naqueles anos, a socialdemocracia europeia ainda tinha fortes tendências de esquerda e uma transição da socialdemocracia para o socialismo democrático parecia possível. Então, na década de 1980, o DSOC fundiu-se com o New American Movement [Novo Movimento Americano], um movimento mais ativista que rompeu com a Nova Esquerda e estava um pouco mais voltado para a militância sindical. Dessa fusão surgiu o DSA. Harrington convocou uma nova coalizão da esquerda trabalhadora com os democratas progressistas: alguns, como David Dinkins, o primeiro prefeito negro de Nova York, eram membros do DSA. Um democrata como Ted Kennedy fez um discurso no funeral de Harrington em 1989. Ou seja, o DSA criou um jogo político: manter um pé dentro e outro fora do Partido Democrata, com a ideia de que a organização poderia se tornar a “ala esquerda do possível”. Após a morte de Harrington, a organização avançou ainda mais para a direita e tornou-se irrelevante. Quando entrei em 2007, o DSA estava basicamente morto, com menos de 5.000 membros. Insatisfeitos com a organização, jovens como eu brincavam dizendo que nos tornamos a “ala direita do impossível”. O conflito neste momento centrou-se na tensão entre os jovens, uma geração localizada mais à esquerda, que criticava a aproximação do DSA com o Partido Democrata, e contemporâneos de Harrington, que estavam tentando manter a organização viva.

No final de 2010, Jacobin surgiu. Embora a revista fosse independente, muitos dos envolvidos no projeto estavam próximos do DSA. E membros de Jacobin que também eram membros do DSA, como Amber Frost e Elizabeth Bruenig, começaram a se destacar. A Jacobin começou a crescer com o movimento Occupy Wall Street em 2011. Mas, assim como o DSA, nosso crescimento real aconteceu na campanha Sanders de 2015–2016. O DSA passou de 6.000 para 12.000 membros durante a campanha. Em geral, aderiram jovens com forte presença nas redes sociais. Muitos deles trabalhavam na mídia ou em outros campos, por isso eram muito visíveis. Mas a verdadeira explosão da organização, em termos de número de membros, ocorreu com a eleição de Trump, quando crescemos para mais de 30.000 aderentes. Muito do que aconteceu foi por acaso: começamos a receber uma cobertura favorável da mídia e as pessoas começaram a pesquisar o “socialismo democrático”.

Quando um determinado tamanho é alcançado e as reuniões são realizadas em todo o país, às vezes com centenas de participantes, o processo de adicionar mais membros funciona sozinho: um amigo ou uma amiga pergunta o que você fará mais tarde e você responde “Vou a uma reunião política, junte-se a mim se quiser”. Assim, o crescimento tornou-se mais orgânico, mas é realmente interessante ver como esse processo foi aleatório, impulsionado em grande parte pela internet.

O mesmo pode ser dito sobre o fenômeno Sanders. Sempre que quero explicar aos meus amigos trotskistas e de outros países que estão tentando entender isso em um contexto internacional, digo: há um nível de fortuna e de contingência. Não é possível entender a campanha eleitoral de Sanders como uma tradicional campanha eleitoral de esquerda, como se houvesse um movimento social de esquerda do qual Sanders seria o reflexo eleitoral. Isso faria sentido em outras épocas do século XX, quando se poderia dizer que o peso dos partidos socialdemocratas nos parlamentos era um reflexo do peso do movimento operário, mas hoje uma situação oposta parece ser observada. Sanders está emergindo de um vácuo e está, de fato, gerando militância, não cooptando ou refletindo forças extraparlamentares. O mesmo acontece com o DSA que, através da internet e com uma cobertura favorável da mídia, está atingindo muitas pessoas de orientação liberal, que acabam indo para a organização. Eu não consigo pensar em um antecedente de algo similar em outro país.

Pode-se dizer de Podemos que muitos de seus fundadores estavam anteriormente ligados a grupos de esquerda tradicionais e então conscientemente tentaram abandonar a linguagem da esquerda mais tradicional para adotar uma retórica mais populista. A ironia nos EUA é que estamos fazendo o oposto de Podemos: estamos recrutando um bando de liberais desiludidos, que falam uma linguagem política mais familiar à maioria dos americanos, e transformando esses liberais em socialistas. De repente, esses liberais estão participando de debates esotéricos sobre Nicos Poulantzas ou Ralph Miliband.

Obviamente, é ótimo que mais pessoas estejam agrupadas em torno de ideias mais radicais, dado o quão radical são os problemas que o mundo enfrenta atualmente. Mas às vezes vejo pessoas que adotam uma retórica alienante e quero lembrar que muitas vezes são as mesmas pessoas que apoiaram Hillary Clinton em 2016.

Em todo caso, não posso explicar completamente a ascensão do socialismo e do DSA. Mas a marca da cultura de massa americana — ou imperialismo cultural — significa que tudo o que fizermos aqui será amplificado.

Alguns elementos que você comenta — a contingência e o papel da mídia na construção política — me lembram um livro interessante de Paolo Gerbaudo, que foi publicado recentemente em inglês: The Digital Party (4). Nele, o autor analisa novos partidos como Podemos ou figuras como Sanders e destaca a natureza paradoxal dessa nova esquerda hipermidiática: de um lado, o peso da imagem favorece a criação de um culto à personalidade — isso me lembra Alexandria Ocasio-Cortez — e também formas organizacionais extremamente verticais. Mas, de outro lado, incentiva uma forma muito descentralizada de compromisso militante, com formas difusas de participação. Vocês lidam com essas questões enquanto tentam formar uma organização massiva e democrática?

O DSA é radicalmente democrático, talvez a organização mais democrática da esquerda hoje, quase em excesso. Sanders é um político cuja campanha podemos moldar e influenciar: se não gostarmos de uma política que ele propõe — um co-pagamento no Medicare, por exemplo — podemos enviar uma mensagem através de canais internos e também através de uma petição externa. Eu acho que podemos moldar sua campanha. Mas não há dúvida de que somos, por sua vez, impulsionados pela energia que ele está gerando. É claro que uma força minoritária pode fazer a diferença. Se olharmos para a luta dos sindicatos de professores dos EUA, a onda de greves foi impressionante, mas por trás deles há algumas milhares de pessoas que estimulam a atividade política em todo o país. Eu acredito que esta é a natureza da política. A chave é que seu programa seja amplamente aceito e que você tenha meios democráticos para promover a ação política, refletindo suas decisões e também disciplinando os políticos eleitos (neste momento, além do experimento em Chicago, não há votação em bloco realmente unificadas por parte dos socialistas) (5).

O que estou tentando dizer é que eventualmente precisaremos de um partido à esquerda do liberalismo. Sobre esta questão, pelo menos no contexto europeu, sou muito tradicional, no sentido de manter algumas coisas antigas que já funcionaram. Eu acho que o Podemos, por exemplo, é um partido incrivelmente antidemocrático. Em vista do que está acontecendo na França e em outros lugares com o chamado retorno do populismo, eu gosto de uma parte da retórica populista, mas gostaria que fosse mais do que apenas isso, retórica; que por trás dos líderes carismáticos exista um processo de construção partidária em um sentido mais tradicional. Eu sou mais permissivo com as tendências populistas aqui nos EUA, porque acredito que ainda estamos em uma situação “pré-partidária”. É necessário entender isso: a situação política nos Estados Unidos é tal que nem sequer temos partidos políticos reais, ou seja, não temos partidos sustentados em filiados. Registrei-me no Partido Democrata quando tinha 18 anos e passei os 11 anos seguintes criticando o Partido Democrata sem parar. Eles não me expulsaram porque, de acordo com a lógica institucional dos partidos, não podem legalmente me expulsar. É uma situação estranha e nos dá espaço, por enquanto, para organizar os socialistas em torno das primárias, embora eventualmente tenhamos que romper definitivamente com os democratas em algum momento.

Você mencionou a ideia de converter liberais ao socialismo. Parece-me que uma grande parte da aposta de Jacobin é justamente essa: polemizar, de boa fé, com uma tradição distinta, o liberalismo, destruir algumas vacas sagradas dessa mesma ideologia, como a livre concorrência, o individualismo empreendedor e a autossuficiência e certas versões da política de identidade.

A ideia sempre foi dividir o liberalismo em diferentes setores, porque vivemos em um país onde a linguagem do socialismo é praticamente inexistente. Então, quando falamos de liberalismo, não estamos interessados naqueles indivíduos que estavam plenamente conscientes de uma política de esquerda e a rejeitavam, optando por outra posição. Estamos interessados em pessoas que nunca foram apresentadas a uma alternativa. Desse segundo grupo, muitos recentemente se intitularam liberais e votaram nos Democratas — muitos de nossos liberais nos EUA são, na verdade, socialdemocratas que não possuem uma linguagem para se reconhecerem como tal. De minha parte, colocaria a ênfase nos setores despolitizados, que raramente votam e, quando votam, o fazem pelos Democratas. Esse grupo nem se identifica com algo que poderia ser chamado de ideologia liberal. Essa distinção é importante no contexto americano. A partir da esquerda, temos que avançar com grande humildade e paciência quando apresentamos nossa visão política. Não temos um histórico de sucessos ao qual possamos recorrer. Não há razão para alguém se identificar como socialista neste país: ninguém está num sindicato com uma tradição socialista, muito poucos tiveram um membro da sua família que militava num partido socialista ou um avô que foi perseguido pela sua filiação socialista. A situação é diferente da de outros países. Acreditamos que existe uma necessidade moral por trás do movimento socialista, mas isso está longe de ser uma necessidade prática na vida cotidiana das pessoas. Novamente, é por isso que precisamos ter paciência e humildade.

Eu gostaria de mudar de assunto e passar para a discussão sobre Trump: um dos argumentos predominantes diz que sua vitória nas eleições reflete um endireitamento da classe trabalhadora americana, especificamente da classe trabalhadora branca. Como você responde a esse discurso? E, além de sua veracidade, como deve a esquerda responder à ameaça do populismo de direita?

A primeira maneira de responder é olhando para o aspecto empírico: a base política de Trump é muito semelhante à base do populismo de direita e dos partidos de direita em todo o mundo. Não são os funcionários do McDonald’s, nem necessariamente os banqueiros e CEOs. O eleitor de Trump é mais provável que seja o gerente regional. É importante levar em conta que os Estados Unidos são um país grande, com muitos eleitores e, portanto, é fácil encontrar milhões de membros da classe operária que votaram em Trump. Com sua campanha, ele conseguiu convencer uma parte suficiente da classe trabalhadora para virar a eleição, num triunfo apertado que dependia dos resultados de alguns poucos estados. Mas a maioria da classe trabalhadora votou em Hillary Clinton ou ficou em casa. É muito importante não superestimar o componente operário de Trump. A agenda de Trump é antipopular. Tem uma base estável de cerca de 40% do país, o que é pouco. Isso não significa que o surgimento de Trump não tenha seu lado aterrorizante. Mas eu não acho que podemos construir política simplesmente reagindo contra a direita. Eu acho que há muita histeria em torno do incipiente movimento fascista nos EUA. O que eu vejo é um crescimento do populismo de direita, que ocorre periodicamente ao longo da história do país, e agora temos a tarefa histórica de derrotar esse populismo novamente. Os liberais veem esses movimentos populistas de direita como inorgânicos e exageram sua novidade histórica.

Em que sentido eles seriam inorgânicos?

Os liberais sempre foram muito hostis a qualquer tipo de militância à direita. Eles entendem essa atividade como paranoica, como se fosse uma expressão de uma doença mental. Qualquer um que questione as instituições republicanas, eles dizem, deve sofrer de doença mental. E os liberais também estendem essa leitura patologizadora para nós, que estamos à esquerda. Eu acho que o Partido Democrata é muito reativo, muito anti-Trump, muito focado em sua personalidade. Isso pode produzir uma situação na qual Trump perde as próximas eleições, mas o Trumpismo não é adequadamente superado. Tem-se centrado demais nos tiques de Trump, uma abordagem que reflete a rejeição que ele gera entre a classe média profissional.

Minha própria experiência na mídia me coloca em contato constante com pessoas que compartilham uma repulsa moral a Trump, que rejeitam sua personalidade, seu óbvio racismo e sexismo. Mas para mim é totalmente insuficiente ficar nisso. Acho que nós, da esquerda, precisamos dizer aos eleitores: “Estamos preocupados, entendemos seus medos e tristezas, e também temos algumas ideias para melhorar as suas vidas”. Assim, não ganharemos a maior parte da base de Trump, porque a maioria daqueles que o apoiam não estão motivados por dificuldades econômicas, mas nossa plataforma poderia reduzir seu apoio.

Acredito que a base para um futuro movimento socialista democrático de massas será composta por aqueles que votaram em Hillary Clinton e aqueles que se sentem totalmente alienados da política. Haverá também uma pequena parte das pessoas que votaram em Trump. Mas é difícil questionar este último grupo, ou mesmo alguns setores do centro, se simplesmente avaliarmos que 40% dos eleitores, ou uma grande parte da população, sofre de um distúrbio psicológico. Isso me parece uma maneira muito errada de fazer política, e também uma análise incorreta.

Se olharmos para algumas das figuras mais proeminentes dos últimos anos — estou pensando em Ocasio-Cortez, do DSA, ou mesmo em uma democrata de esquerda como Ilhan Omar -, parece que os pilares do consenso liberal do país estão sendo fortemente questionados. A política externa dos EUA é contestada em todos os discursos de Omar, enquanto Ocasio-Cortez defende um Green New Deal [Novo Pacto Verde], que não apenas signifique uma refundação do Estado, mas que também questione o domínio irrestrito do capital sobre a sociedade estadunidense. Você se sente esperançoso de um possível realinhamento do consenso liberal para a esquerda?

Sim. E, para ser honesto, essa sempre foi nossa estratégia. Se houve uma estratégia compartilhada entre o movimento progressista e os socialistas democráticos, foi essa: dividir o que parece ser uma forte coalizão do Partido Democrata. Não acreditamos que todos os eleitores do Partido Democrata apoiem realmente o liberalismo centrista de Clinton. Votaram nisso simplesmente porque era a melhor alternativa e eles sabem o quão ruim é a direita americana e o quão de direita é o Partido Republicano.

Depois, procuramos distinguir entre os membros do Partido Democrata que apoiam o Estado de bem-estar social e o resto do Partido Democrata e sua liderança. Eu acredito que esta divisão é algo que é personificado em figuras do DSA como Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib e Ilhan Omar, entre outras. Por trás do triunfo eleitoral destas figuras, há uma organização chamada Justice Democrats [Democratas pela Justiça], um grupo que, sem ter as mesmas motivações socialistas, usa as mesmas táticas que o DSA costumava usar antes: trabalhar dentro do Partido Democrata como uma força insurgente. Hoje, a militância do DSA está concentrada em outros lugares, fora do Partido Democrata, no ativismo de base.

É emocionante ver como essas divisões do partido foram personificadas. Acho que aprendemos uma ótima lição: identificamos nossa base e impulsionamos uma ação. Ocasio-Cortez não teria sido eleita sem a iniciativa de grupos como Justice Democrats ou DSA. Agora ela, como indivíduo, está radicalizando essas divisões e polarizando o debate de um modo que favorece a esquerda.

O que é, então, que estamos fazendo nos EUA com esse novo tipo de político, com os socialistas que foram eleitos ou mesmo com a campanha de Sanders? Aqui tenho que confessar que ainda não elaborei um referencial teórico, embora esteja tentando desenvolvê-lo. Eu venho de uma formação marxista ortodoxa. Mas há uma observação que é útil no plano teórico: Sanders e o movimento que o cerca representam uma socialdemocracia ancorada na luta de classes, que é diferente dos modelos antigos de socialdemocracia. Enquanto no período pós-guerra a Socialdemocracia procurava canalizar a militância sindical e o movimento trabalhista, tentando transformá-los em poder eleitoral e em um pacto de governabilidade baseado no equilíbrio de classes, Sanders e Jeremy Corbyn são forças totalmente insurgentes.

Em teoria, são movimentos moderados. Mas a maneira pela qual eles buscam conquistar o poder implica um processo de luta e polarização. Quando Sanders fala sobre os “milionários e bilionários”, está invocando a figura do conflito social como a única maneira de as pessoas trabalhadoras conquistarem o que merecem. Nesse sentido, é importante esquecer a ideia de que “Sanders é um mero socialdemocrata”, porque mesmo que suas ideias não sejam revolucionárias, ele é um insurgente.

É necessário dar impulso a esse processo socialdemocrata, que se desenrola de acordo com uma lógica de luta de classes, para primeiro conquistar um sistema de bem-estar pleno e depois, sem desmobilizar, radicalizar o mesmo processo em direção ao socialismo. Na verdade, hoje tenho menos certeza do que antes sobre os passos a seguir, mas ao mesmo tempo estou mais confiante de que, de alguma forma, a história nos acompanha. Tenho mais certeza sobre a necessidade moral do socialismo democrático, mas mais ainda sobre o fato de que as pessoas tomarão consciência de que a democracia e a política oferecem soluções para seus problemas, e que não serão seduzidas pela política de exclusão, ódio e barbárie oferecida pela direita.

Notas:

(1) B. Sunkara: The Socialist Manifesto: The Case for Radical Politics in an Era of Extreme Inequality, Basic Books, Nueva York, 2019.

(2) Werner Sombart: Por que não há socialismo nos Estados Unidos? [1906], Capitán Swing, Madrid, 2009.

(3) Ministro presbiteriano estadunidense. Foi pacifista e candidato presidencial pelo SPA em seis ocasiões.

(4) P. Gerbaudo: The Digital Party: Political Organisation and Online Democracy, Pluto Press, Londres, 2018.

(5) Will Bloom: «Uma onda socialista em Chicago» em Nueva Sociedad, edição digital, 4/2019, www.nuso.org.

Tradução: Daniel Monteiro.

Fonte: https://nuso.org/articulo/socialismo-estadounidense-sunkara-alexandria-ocasio-jacobin/?utm_source=email&utm_medium=email

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