Luta de Classes e Transição ao Socialismo

Numa longa carta dirigida a Pavel Annenkov[1], Marx critica A filosofia da miséria de Proudhon — “confesso francamente que acho o livro ruim de um modo geral, e muito ruim”[2] -, colocando a questão nos termos que se seguem:

“Que é a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da ação recíproca dos homens. Os homens são livres para escolher tal ou qual forma social? De jeito nenhum. Coloque um certo estado de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens e você terá uma tal forma de comércio e de consumo. Coloque certos graus de desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo e você terá tal forma de constituição social, tal organização da família, das ordens ou das classes, em uma palavra, tal sociedade civil. Coloque tal sociedade civil e você terá tal estado político que é a expressão oficial da sociedade civil. Eis o que o Sr. Proudhon jamais compreenderá, pois ele pensa fazer uma grande coisa quando chama de Estado à sociedade civil, quer dizer, de resumo oficial da sociedade à sociedade oficial.”

Marx insiste, então, em sublinhar as determinações do processo histórico.

“Não é preciso acrescentar que os homens não são os livres árbitros de suas forças produtivas — que são a base de toda a sua história — pois toda força produtiva é uma força adquirida, o produto de uma atividade anterior. Assim, as forças produtivas são o resultado da energia prática dos homens, mas essa mesma energia está circunscrita pelas condições nas quais os homens se encontram colocados pelas forças produtivas já dadas, pela forma social que existe antes deles, que eles não criam, mas que é o produto da geração anterior. Pelo simples fato de toda geração posterior encontrar forças produtivas adquiridas pela geração anterior, que lhe servem como matéria prima da nova produção, forma-se uma conexão na história dos homens, forma-se uma história da humanidade, que é tanto mais a história da humanidade quanto as forças produtivas dos homens, e em consequência suas relações sociais, crescem. Consequência necessária: a história social dos homens é a história do seu desenvolvimento individual, tenham consciência ou não. Suas relações materiais são as formas necessárias nas quais sua atividade material e individual se realiza.”[3]

Vale registrar que, nessa carta, Marx faz referência à “escravidão dos escravos negros no Suriname, no Brasil”. E que ele aponta a escravidão nas colônias como “pivô da nossa industrialização atual”. E diz que “foi a escravidão que deu valor às colônias, foram as colônias que criaram o comércio mundial e o comércio mundial foi a condição necessária à grande indústria maquinizada. “[4]

Mais adiante, Marx diz que o “grande movimento histórico […] nasce do conflito entre as forças produtivas dos homens, já dadas, e suas relações sociais, que não correspondem mais a essas forças produtivas”. E que esse conflito se expressa como “guerras terríveis, que se preparam entre as diferentes classes, entre as diferentes nações”. Para Marx, essas colisões só poderão ser resolvidas pela “ação prática e violenta das massas”.[5]

Alguns anos depois, em carta a Joseph Weydemeyer[6], Marx indica as três classes da agricultura capitalista.

“O produto da terra, todo o lucro que se pode tirar de sua superfície pela aplicação conjugada do trabalho, das máquinas e do capital se reparte entre três classes da sociedade, a saber: o proprietário do solo, o possuidor do capital exigido para a sua cultura e os trabalhadores que, por sua indústria, cultivam esse solo.”[7]

Terratenente, capitalista e trabalhador assalariado, eis as três classes fundamentais do modo de produção capitalista.

O tema da luta de classes, com suas determinações e mediações, permeia toda a correspondência de Marx e Engels. Mas Marx não se arvora o mérito da descoberta da existência das classes nem da luta de classes.

“Agora, no que me concerne, não é meu o mérito de haver descoberto a existência das classes na sociedade moderna, nem a luta que elas travam entre si. Bem antes de mim, os historiadores burgueses expuseram a evolução histórica dessa luta de classes e os economistas burgueses descreveram sua anatomia econômica. O que eu aportei de novo foi: 1º) demonstrar que a existência das classes está ligada a fases históricas determinadas do desenvolvimento da produção; 2º) que a luta das classes leva necessariamente à ditadura do proletariado; 3º) que essa ditadura representa uma transição em direção à abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes.”[8]

Marx expõe aqui o vínculo entre luta de classes e sociedade dividida em classes, por um lado, e, por outro, entre essa luta e a conquista de uma sociedade sem classes. Além disso, cabe notar que ele emprega o conceito de “ditadura do proletariado” como forma de transição para a sociedade sem classes, o que já deu muito pano pra manga.

Sobre essa questão, vale precisar:

1º) Marx emprega o conceito de “ditadura do proletariado” num grau elevado de abstração: no mesmo nível que o de “modo de produção” (não se trata, pois, de uma consigna política);

2º) o Estado stricto sensu existe para garantir as condições extra-econômicas de funcionamento do modo de produção (sua reprodução ampliada) e nesse sentido tem por finalidade última impor os interesses da classe dominante em situações conturbadas ou de crise (vale dizer, realiza quando necessário a ditadura da classe dominante);

3º) quando fala de “ditadura do proletariado”, Marx está se referindo a uma forma de Estado que representa a maioria da população (o poder da maioria contra uma minoria);

4º) a “ditadura do proletariado” é uma forma de transição que avança para a sua extinção (dissolução do Estado).

Mas, se é assim, por que Marx não preferiu pronunciar “democracia socialista” ou “democracia do proletariado” no lugar de “ditadura do proletariado”? Acho que fica óbvia a sua escolha: enfatizar a coerção extra-econômica na transição para uma nova ordem social, sobretudo no primeiro momento, quando é preciso violentar a ordem burguesa. Esse é o momento em que os capitalistas são expropriados e se opera o processo de transformação revolucionária da propriedade privada sobre os meios de produção em propriedade social. Será preciso, então, sufocar a reação dos expropriados. Engels é muito claro a esse respeito: “somos obrigados a nos servir dele [o Estado] na luta, na revolução, para reprimir pela força os adversários”. E mais: “entanto o proletariado ainda tenha necessidade do Estado, não há de ser para a liberdade, mas para reprimir seus adversários”[9].

De todo modo, a ditadura do proletariado não se confunde com o Terror jacobino. Referindo-se ao regime de Robespierre, Engels expressa em carta a Marx (de 4 de setembro de 1870): “O terror são, na maior parte do tempo, crueldades inúteis que pessoas assustadas cometem para se garantir. Estou persuadido que a responsabilidade do Terror de 1793 deve-se quase que exclusivamente aos burgueses amedrontados que pousavam de patriotas, aos pequeno-burgueses que exibiam suas calças e aos mafiosos que aproveitavam para fazer seus negócios. O pequeno terror atual é igualmente obra dessas classes.”[10]

Essa questão está bem esclarecida por Engels no trecho a seguir:

“Desde 1848, Marx e eu temos a opinião de que um dos resultados finais da revolução proletária em marcha será a dissolução gradual e em definitivo, o desaparecimento da organização política denominada Estado, uma organização que sempre teve como objetivo principal assegurar com o emprego da força armada a tutela econômica da maioria dos trabalhadores pela minoria dos possuidores. Com o desaparecimento da minoria possuidora desaparece a necessidade de uma força estatal armada com finalidades repressivas. Ao mesmo tempo, nós sempre estimamos que para isso, assim como para a realização de outros fins muito mais importantes da revolução social a vir, o proletariado, antes de tudo, deverá começar por tomar posse do poder político organizado do Estado para quebrar com a sua ajuda a resistência da classe dos capitalistas e reorganizar a sociedade. Tudo isso já está no Manifesto comunista de 1847, no fim do capítulo 2.”

E, prosseguindo, Engels polemiza diretamente com os anarquistas:

“Os anarquistas colocam o problema ao inverso. Dizem que a revolução proletária deve começar pela eliminação da organização política do Estado. Mas, após a vitória do proletariado, é justamente o Estado que representa a única organização que a classe operária triunfante encontra disponível para seu uso. Com certeza, esse Estado requer importantes modificações antes de poder assumir suas novas funções. Mas destruí-lo completamente num tal momento equivaleria a destruir o único aparelho com a ajuda do qual o proletariado triunfante pode assumir o poder que ele acaba de conquistar, reprimir seus inimigos, os capitalistas, e realizar a revolução econômica da sociedade sem a qual toda a sua vitória terminaria inexoravelmente num fracasso e no extermínio em massa dos operários, como foi o caso após a Comuna de Paris.”[11]

Sem a menor pretensão de equacionar os problemas pendentes, é bom ter em mente que a questão da transição é tão complexa que até mesmo um crítico do marxismo como o pensador liberal Norberto Bobbio, que simplesmente nega a existência de uma teoria marxista do Estado, admite que “o método democrático é um bem precioso, mas não para todos os tempos e lugares”.

Como reconhece Bobbio,

“Existem períodos de risco ou de crise das instituições, que os juristas conhecem com o nome de estado de necessidade ou de emergência, para os quais os escritores políticos de todos os tempos invocam o princípio da “salus rei publicae suprema lex” ou, na verdade, da passagem violenta de uma ordem a outra, ou de ruptura revolucionária, nos quais o método democrático não serve e as regras do jogo, se existem, são mandadas às favas. São períodos em que, na teoria clássica, aparece o ditador como magistrado extraordinário para situações extraordinárias e, a partir da teoria política da revolução francesa, o ditador coletivo dos jacobinos, dos Iguais, do chamado blanquismo até o partido-vanguarda de Lênin, ou então o demiurgo, o chefe carismático de Max Weber. São os momentos que se inserem na categoria weberiana do status nascenti […]”

Em tais momentos extraordinários, segundo Bobbio, “forma-se uma vontade coletiva, compacta e concorde, que delibera, quando chamada a deliberar, por unanimidade.”[12]

Há muito que discutir sobre o tema. Não se trata de matéria sobre a qual se possa passar batido. E, certamente, muita água já rolou desde que Marx e Engels escreveram suas cartas. A polêmica, portanto, continua aberta.

Mas uma questão é certa: para transformar a propriedade estatal sobre os meios de produção em propriedade social, o proletariado revolucionário precisa de um Estado de transição que realize a mais ampla participação popular na gestão desses meios de produção, sem a qual não há socialização. E isso equivale a uma radicalização da democracia sem precedentes na história.

Já em Princípios do Comunismo (texto de 1847 que serviu de base para o Manifesto Comunista), Engels sinaliza que “a revolução do proletariado instaurará uma constituição democrática e, com isso, o domínio político, direto ou indireto, do proletariado”. [13]

Mas é em 1891, na Crítica ao Programa de Erfurt, que Engels esclarece a ditadura do proletariado como conteúdo da forma democrática republicana: “a forma específica da ditadura do proletariado […] é a república democrática”.[14]

Notas:

[1] Pavel Vassiliévitch Annenkov (1812–1887), proprietário de terras e homem de letras, foi um liberal russo que conheceu Marx pessoalmente na década de 1840.

[2] Carta de Marx a P. Annenkov, 18 de dezembro de 1846. (Correspondance, p. 20)

[3] Carta de Marx a P. Annenkov, 18 de dezembro de 1846. (Correspondance, p. 21–22)

[4] Carta de Marx a P. Annenkov, 18 de dezembro de 1846. (Correspondance, p. 27)

[5] Carta de Marx a P. Annenkov, 18 de dezembro de 1846. (Correspondance, p. 29)

[6] Joseph Weydemeyer (1818–1866), militante do movimento operário alemão e norte-americano, foi da Liga dos Comunistas, participou da revolução de 1848–1849 na Alemanha, foi coronel do exército nortista durante a guerra da secessão e foi o primeiro propagandista do marxismo nos Estados Unidos.

[7] Carta de Marx a J. Weydemeyer, 5 de março de 1852. (Correspondance, p. 62)

[8] Carta de Marx a J. Weydemeyer, 5 de março de 1852. (Correspondance, p. 62)

[9] Carta de Engels a A. Bebel, 18–28 de março de 1875. (Correspondance, p. 301)

[10[ Carta de Engels a Marx, 4 de setembro de 1870, (Correspondance, p. 252)

[11] Carta de Engels a V. Patten, 18 de abril de 1883. (Correspondance, p. 374)

[12] BOBBIO, Norberto. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa. Tradução de Iza de Salles Freaza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 81–82

[13] ENGELS, Friedrich. Princípios do comunismo; apêndice a BUKHARIN, Nicolai. ABC do comunismo. São Paulo: Global, 1980, p. 131

[14] ENGELS, Friedrich. Critique du Programme d’Erfurt; em MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Critique des programmes de Gotha et d’Erfurt. Paris: Éditios Sociales, 1966, p. 103

Bibliografia:

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Correspondance (1844–1895), Moscou: Éditions du Progrès, 1971.

* Citações traduzidas livremente do francês.

Karl Marx (Tréveris — Prússia, 5 de maio de 1818 — Londres — Inglaterra, 14 de março de 1883) e Friedrich Engels (Barmen — Prússia, 28 de novembro de 1820 — Londres — Inglaterra, 5 de agosto de 1895)

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN, exilado político, mestre em Literatura Brasileira, é professor da rede estadual do RJ.

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