Com a repercussão do discurso genocida do Presidente Bolsonaro ontem, no seu pronunciamento em rede nacional, entrevistamos a Mestre em direito e militante do PSOL, Lorena Duarte.
Contrapoder: O que representa, na prática, o pronunciamento oficial do presidente no dia de ontem?
Lorena Duarte: O pronunciamento de ontem de Bolsonaro representa, na prática, uma aposta alta que coloca na mesa a vida dos trabalhadores e trabalhadoras do país. O coronavírus se espalha com uma facilidade muito grande, pelo ar, por superfícies que foram tocadas por alguém contaminado, até pelas solas dos sapatos. Por isso, manter o país funcionando normalmente sem que nenhuma outra estratégia eficiente de diagnóstico e tratamento da doença seja tomada significa que Bolsonaro aposta na disseminação do vírus e das mortes decorrentes dele, fazendo um cálculo (certo ou errado, a história vai dizer) de como ligar com o prejuízo político disso. Ele sabe, e nós sabemos, que crises econômicas graves (como a que passaremos, inevitavelmente) são quase sempre atribuídas aos governantes, mas mortes por um vírus, nem sempre. Passada a pandemia e o caos que vem com ela, ele provavelmente vai dizer que fez tudo o que estava a seu alcance para evitar o caos econômico, mas que foi impedido pelo “sistema” e pelos “políticos de sempre”. Com relação aos mortos e doentes, são dados científicos e Bolsonaro já demonstrou como lida com esse tipo de conhecimento: com vedação do acesso à informação, boataria, mentiras e negação da ciência.
Contrapoder: Quais as possibilidades legais, no campo jurídico-político, para assegurarmos a vida aos brasileiros?
Lorena Duarte: A primeira coisa que precisamos ter em mente é a de que o direito não tem respostas prontas pra essa crise, porque ela é literalmente sem precedentes. Nunca tivemos ao mesmo tempo uma pandemia dessas proporções e um lunático fascista na presidência. Nossa Constituição não prevê nenhum mecanismo pra afastar o presidente sem mobilizar todo o Congresso Nacional, por exemplo. No entanto, a Constituição Federal prevê uma série de garantias fundamentais que podem ser evocadas no Judiciário, mesmo sabendo-se dos limites desse poder no que se refere ao seu caráter classista, racista, patriarcal e conservador. Para isso, é fundamental, mais do que nunca que os Ministérios Públicos, as Defensorias Públicas, as entidades de classe e os coletivos de advocacia popular estejam ativos e comprometidos. Da mesma forma, o Poder Legislativo em todas as esferas (federal, estadual, municipal) tem obrigações e prerrogativas que podem auxiliar, além dos poderes executivos dos estados e municípios (governadores e prefeitos). Existe como reduzir os danos do Bolsonaro, mesmo por dentro do direito.
Contrapoder: Em sua análise, quais os próximos passos que deve tomar o governo? E quais os passos que os trabalhadores e suas representações devem tomar?
Lorena Duarte: Bolsonaro vai continuar apostando as nossas vidas na mesa insana e assassina de jogo que a política é pra ele. Ele continua tentando garantir os interesses dos grandes empresários, mandando as pessoas seguirem suas vidas normalmente para não cessar o lucro, se recusando a criar políticas públicas para garantir renda básica e universal e acesso a bens básicos para a vida e para a contenção do vírus e atrapalhando os governos locais, porque é parte da narrativa de “anti-sistema” que ele constrói, sobre a qual se elegeu e que acredita que pode reelegê-lo.
O grande desafio de viver e militar sob um governo assim é a necessidade constante de atuar em várias frentes ao mesmo tempo. É preciso se organizar politicamente para garantir a segurança e a saúde dos nossos e, ao mesmo tempo, pressionar as autoridades locais (e órgão como Defensorias Públicas e Ministérios Públicos) para que criem mecanismos de minimizar os danos do coronavírus e do Governo Bolsonaro, além de se organizar para derrubá-lo, com urgência. A tarefa histórica é imensa, mas é nossa.
Contrapoder: Em um dia o presidente apresenta uma MP para a crise, no outro diz que: não haverá mais confinamento, o que está valendo nessa confusão jurídica-política?
Lorena Duarte: Bolsonaro aposta na confusão política e jurídica porque consegue manipulá-la depois, independentemente do resultado. Pra se isentar do desastre econômico, pode dizer que tentou conter a “histeria” que gerou desemprego e recessão. Pra se inocentar das milhares de mortes que virão, pode dizer que decretou a calamidade ainda em fevereiro. Juridicamente, o que vale é o conjunto dos decretos e medias provisórias e leis aprovadas, ainda que internamente contraditórias. No fim, é esse o trabalho do jurista burguês: manipular a confusão jurídica para tecer um discurso com eficácia jurídica.
O problema maior, a meu ver, é que quando vemos o que ele fez, perdemos um pouco de vista o que poderia ter sido feito por qualquer governo minimamente razoável: decretação de calamidade e isolamento social; alteração da legislação trabalhista para evitar demissões em massa; garantia de renda básica e universal para possibilitar o isolamento em condições adequadas; disposição de crédito em condições favoráveis para empresários individuais, pequenas e médias empresas não falirem; aumento da arrecadação por meio da taxação de grandes fortunas; distribuição de material de higiene e de promoção de soberania alimentar e nutricional para pessoas, famílias e comunidades de baixa renda; criação de um programa nacional voltado especificamente para a população em situação de rua; proibição do corte de água, luz, telefone e internet no período de calamidade; criação de um programa emergencial de construção de hospitais e aquisição de material de saúde para infectados e profissionais de saúde; providências de isolamento e atenção básica à saúde indígena e de comunidades e territórios tradicionais; aumento do apoio à agricultura familiar, para evitar ao mesmo tempo o trabalho em condições de risco e uma crise do abastecimento alimentar; para citar apenas algumas medias possíveis, concretas, viáveis.
Contrapoder: Quais as saídas que podemos ter para derrubar o governo, neste período de quarentena?
Lorena Duarte: Diante da impossibilidade de ocupar as ruas nesse momento, acredito que a formulação de estratégias de comunicação, informação, propaganda mesmo, podem e devem ser alguns dos focos dos trabalhadores, individual e coletivamente. Dar visibilidade e integrar as iniciativas que já existem, criar um caldo de indignação que entorne no momento politicamente oportuno, é fundamental. Sobretudo, é preciso sobreviver ao vírus e a Bolsonaro. É preciso que fortaleçamos os vínculos de afeto e solidariedade entre nós, que nos cuidemos e nos fortaleçamos enquanto classe coesa.